A História reescrita e a censura da ficção



Se há uma obra de ficção que
indiscutivelmente impactou-me como leitora e escritora de ficção foi o
grandioso épico “E O Vento Levou”, de Margaret Mitchell, que li ano
passado. A escrita magistral brinda-nos com personagens descritos
brilhantemente tanto no aspecto físico como emocional e extremamente bem
construídos, bem como falas inesquecíveis vindas muitas vezes de
personagens secundários (Beatrice Tarleton, a criadora de cavalos, por
exemplo) e um bem construído background histórico da Guerra de Secessão (1861-1865) sob a ótica dos estados Confederados (sul dos EUA).
E é exatamente devido ao momento
histórico retratado tanto pelo livro como pelo filme nele baseado que os
militantes da praga politicamente correta têm cada dia mais fomentado a
celeuma que se ergue contra esse grande clássico da literatura
americana. No artigo “‘Gone With the Wind’ should go away with the Confederate flag”, Lou Lomenick sugere que “E o Vento Levou” deveria ser banido por se tratar, segundo ele, de um obra “racista”.
Uma breve observação. Desde o bárbaro
atentado a uma igreja protestante em Charleston perpetrado por um
psicopata racista no qual 9 pessoas morreram, muitos na esquerda
americana têm insistido com a ideia de que é preciso banir dos olhos do
público a bandeira que representou os então Estados Confederados durante
a Guerra de Secessão, pois ela incentivaria o racismo, uma vez que o
assassino tinha fotos com a dita bandeira. Bem, isso é querer negar a
história. Ainda que sim as grandes plantations do sul dos EUA
utilizassem mão-de-obra escrava e não quisessem abrir mão de tal forma
de produção, a bandeira representa um fato histórico ocorrido e que
exatamente por isso não pode e não deve ser negado. E mais que isso:
deve ser conhecido amplamente para que jamais se repita. Acredito que
ostentar a bandeira Confederada por si só não faz de alguém um racista
assim como o não ostentá-la não quer dizer que o sujeito não seja
racista.
GoneWithTheWindÉ
seguindo esse mesmo raciocínio que Lomenick propõe banir “E O Vento
Levou”. Segundo ele, a história “transmite a ideia de que a Guerra Civil
era uma nobre causa perdida e que os yankees (americanos do
norte do país) e simpatizantes foram grandes vilões tanto na guerra como
na reconstrução”. Bem, “E O Vento Levou” retrata a Guerra de Secessão
sob a ótica dos fazendeiros do sul dos EUA, que faziam uso de
mão-de-obra escrava na lavoura e na pecuária, de modo que a ficção é
verossímil, ou seja, condizente com a realidade daqueles personagens.
Nesse contexto, necessariamente os personagens sulistas sentem-se
violados pelos soldados do norte: eles estupraram suas mulheres,
roubaram suas casas e mantimentos, queimaram suas terras – todos atos
típicos de uma guerra, é claro, mas evidentemente bárbaros. E é óbvio
que para aqueles personagens a guerra era uma causa nobre, pois era o
modo de vida deles que estava em jogo. Hitler também julgava a Segunda
Guerra uma causa nobre, quem entra em uma guerra sempre achará nobre a
sua própria causa, por mais pérfida que ela seja. Assim, ainda que seja
abominável defender a escravidão, os personagens de uma obra ambientada
naquele período e naquele lugar, naturalmente a defenderiam.
Surpreendentemente, no livro ao menos, subentende-se que o protagonista,
Rhett Butler é um abolicionista que se cala para não sofrer retaliações
em meio aos que pensam diferente dele.
Sim, o filme não faz referência à KKK
(Ku-Klux-Klan), mas o livro sim. O livro a retrata como algo bom?
Depende. As mulheres consideravam perigoso envolver-se com aquilo, porém
o envolvimento é, dentro da trama ao menos, justificado diante a
política estabelecida durante a reconstrução segundo a qual autoridades
fariam vista grossa a crimes cometidos por negros recém-libertos. Para
mim, em particular, isso não é uma boa justificativa para se criar uma
organização como a KKK, pois não há justificativa nenhuma aceitável para
isso. A grande questão exposta na narrativa que Lomenick não menciona é
que o livro claramente mostra a Klan como surgida no seio do partido
Democrata, ao qual eram vinculados os grandes produtores rurais do sul.
Sim, o mesmo Partido Democrata que hoje posa de defensor de minorias e
monopolista das virtudes foi contrário à abolição da escravidão e
fundador da KKK, enquanto a abolição foi uma causa abraçada e
ferrenhamente defendida pelos Republicanos desde a fundação do partido,
sempre ligado a causas afins ao Liberalismo Clássico. Racistas não são
os Republicanos, como gostam de pregar os Democratas, mas sim estes, que
fomentam dia após dia a luta de classes em seus discursos inflamados
que estimulam negros a odiar brancos por causa de um passado que na
verdade pertence a toda a humanidade, visto que a escravidão foi
verificada desde o início dos tempos. E mais ainda se considerarmos que
em países socialistas populações inteiras são escravas de seus governos
autoritários.
Sobre o livro, ainda digo mais. Mammy, a
escrava do lar dos O’Hara, que dizia orgulhosa que nasceu na casa
grande dos Robillard e jamais pisou em uma senzala (e que se recusava a
trabalhar no campo mesmo quando as senhoras semearam e colheram algodão
com as próprias mãos), é retratada como uma das personagens mais
brilhantes e queridas pelas demais personagens da história. Mais que
isso, Mammy é astuta, mas também dura com aqueles com quem ela se
preocupava. Nenhum negro no livro é descrito como mera máquina de
trabalho, mas como seres humanos dotados de sentimentos, de
personalidade. Dizer que essa é uma história racista porque eles eram
escravos em uma época que assim infelizmente o era na vida real? A
propósito, a própria Hattie McDaniels, grande atriz que deu vida a Mammy
no cinema, foi frequentemente boicotada por movimentos negros sob a
alegação de que ela “ajudava a manter o estereótipo servil do negro na
sociedade ao aceitar representar domésticas e serviçais”, ao que a atriz
reagia dizendo que preferia ganhar 700 dólares por semana para
interpretar uma criada a ganhar 7 dólares por semana para ser uma
criada. Big Sam, outro dos personagens egressos dos campos de Tara
salvou Scarlett de ser estuprada por negros que eram bandidos. Havia
negros e brancos bons e maus nessa história, tal como na vida real e
negar isso é desconhecê-la.
Banir a história mais épica escrita no
século XX porque ao retratar uma realidade da época que ela descreve
sensibilidades são feridas é levar a novilíngua a um novo nível. É
claramente querer reescrever a história só porque há episódios feios
nela. E isso não é exclusividade do atual momento dos EUA. O que foi a
“Comissão da Verdade” senão uma tentativa de reescrever a história do
Brasil? Desde quando uma comissão que se pretende “da verdade” apura
apenas um lado do conflito? Por que apenas militares que cometeram
crimes durante o Regime Militar foram rotulados como “malvados”, quando é
sabido que os terroristas de esquerda do período não tiveram a morte de
suas mais de 100 vítimas sequer apuradas? Porque construir a narrativa
histórica que será impressa nos livros de história, no caso tratando os
terroristas como democratas que sofreram nas mãos de autoritários
bárbaros e de maneira unilateral, é o que irá determinar o sucesso da
militância no futuro.
Portanto, considerar “E o Vento Levou”
um filme racista devido ao fato de retratar os sulistas democratas (sim,
eram todos democratas, os republicanos que desde o início defenderam o
fim da escravidão e sim, foram os democratas que criaram a KKK)
defendendo a escravidão no período em que historicamente eles de fato
defendiam a escravidão não é só uma excrescência, é doentio. Fazia parte
da realidade daquele período aquelas pessoas terem escravos; fazia
parte da realidade das pessoas daquele período ter saudades de como
levavam a vida antes da guerra (lembrando que os soldados do norte
muitas vezes atearam fazendas inteiras com famílias no interior da casa
grande).
Independentemente do quão condenável
seja o ponto de vista de um personagem, nós que escrevemos ficção
devemos ser livres para criarmos qualquer espécie de personagem e, mais
que isso, não podemos tolerar que limitem nossa liberdade de expressão. E
quando escrevemos algo tendo como pano de fundo algum grande evento
histórico, não podemos ser tolhidos de expressar a visão de nossos
personagens de acordo com a posição que ele ocupa dentro daquele
contexto histórico. Vamos banir filmes que retratem o holocausto só
porque necessariamente haveria personagens nazistas que o defenderiam?
NÃO! JAMAIS! Isso seria falsear a realidade por trás de uma narrativa
ficcional, porém verossímil. E jamais devemos conceder a ninguém a
prerrogativa de reescrever a história, sobretudo tentando esconder o que
nefasto aconteceu.




Thaís Gualberto, bacharel em Ciências Econômicas pelo Instituo Brasileiro de Mercados e Capitais (Ibmec-RJ).




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