Relíquias de Marc Ferrez
fonte: Blog Semióticas
Boas e más notícias
trouxeram de volta à mídia o nome de Marc Ferrez (1843-1923), um
dos mais importantes fotógrafos brasileiros de todos os tempos. As
boas notícias: uma parte considerável da obra completa de Ferrez
foi adquirida pelo Instituto Moreira Salles (IMS), que lançou no
Brasil e na França um catálogo impecável reunindo ensaios escritos
por especialistas e uma coleção de 160 imagens primorosas datadas
do final do século 19 e do começo do século 20.
Além das
fotografias reunidas na edição, há também um acervo de mais de
300 imagens originais de Ferrez, a maioria belas panorâmicas em
negativos de grande formato (40cm X 110cm), que permanece em
exposição itinerante nas sedes do IMS e em outros espaços no
Brasil e no exterior. Parte do acervo também está aberta ao
público através do site que o IMS mantém na internet. Tanto o catálogo impresso como a mostra
itinerante e as imagens disponíveis no site revelam a arte grandiosa
de Ferrez, que criou no Brasil, antes de qualquer outro pioneiro da
fotografia, uma linguagem que se tornaria universal e quase
obrigatória em livros e reportagens de turismo e no formato de cartões
postais.
Também há más
notícias: o nome de Marc Ferrez frequentou as páginas policiais por
conta de um grande roubo no acervo da Biblioteca Nacional, no Rio de
Janeiro, registrado em 2005, quando desapareceram cerca de 150 de
suas fotografias mais raras e celebradas. Um crime perfeito, que não
deixou pistas, aparentemente realizado sob orientação de
especialistas: além das séries valiosas de Ferrez, também furtaram
fotografias e negativos originais de importantes e pioneiros
fotógrafos do século 19, entre eles August Stahl (1828-1877),
Guilherme Liebenau (1838-1900) e Benjamin Mulock (1829-1863).
As boas e as más
notícias colocaram em evidência o gênio de Marc Ferrez, nome
fundamental da fotografia e do cinema brasileiro que, em seus 80 anos
de vida, registrou todo o Brasil em belas panorâmicas e em retratos
impressionantes, entre ilustres personalidades e anônimos que
encontrou em cada região do país. Filho de um casal de escultores e
gravadores franceses que vieram para o Brasil em 1816, com a Missão
Artística Francesa, Ferrez foi comparado aos grandes pintores pelos
intelectuais do Império e da primeira República, o que era a mais
nobre das distinções, numa época em que o trabalho de fotografar
estava longe de ser considerado uma arte.
Arauto da
Modernidade
O livro, na verdade um belo catálogo fotográfico intitulado “O Brasil de Marc Ferrez”, traz detalhada biografia, cronologia de seus principais trabalhos e ensaios de Françoise Reynaud, curadora do Museu Carnavalet, em Paris, e dos pesquisadores Maria Inez Turazzi, Pedro Karp Vasquez, Laurent Gervereau, Frank Stephan Kohl, Sérgio Burgi e Antônio Fernando De Franceschi, superintendente do IMS. Com a publicação e a exposição itinerante do acervo, foi a primeira vez que a obra de Marc Ferrez chegou ao público de forma abrangente.
Nas fotografias de
Ferrez, o que mais surpreende, junto com sua demonstração de
domínio da luz, é sua precisão na escolha do ponto de vista para
ressaltar no enquadramento a qualidade estética das cenas
registradas. São imagens comoventes, mesmo depois de todos os
avanços tecnológicos da maquinaria fotográfica. Como destaca De
Fraceschi em um dos ensaios do livro, abordando as singularidades da
obra de Ferrez e sua influência sobre pintores célebres que se
dedicaram às paisagens do Brasil:
“O que interessa,
cada vez mais, é compreender as relações passadas e presentes
entre a fotografia e a pintura, sobretudo agora, quando as vanguardas
contemporâneas parecem ter se desinteressado do mundo objetivo,
deixando para a fotografia a inteira responsabilidade de se ocupar do
real. Diante da obra monumental de Marc Ferrez, fica mais fácil
compreender porque se atribui às suas belas imagens, produzidas na
segunda metade do Oitocentos e nas primeiras décadas do século 20,
os primeiros registros sobre a entrada do Brasil na Modernidade”.
Além do privilégio
da nomeação como primeiro (e único) Fotógrafo da Marinha
Imperial, Ferrez pôde percorrer o país como um dos principais nomes
da Comissão Geológica do Império, a partir de 1875, fotografando
atividades econômicas, a construção das principais estradas de
ferro, as construções seculares da arquitetura barroca, as minas de
ouro e pedras preciosas em Minas Gerais, as belas paisagens e os
cenários desconhecidos das cidades, das florestas e das fazendas,
seus costumes e personagens dos salões, das ruas, dos grotões.
Funcionário
dos mais destacados nos quadros do Segundo Império, primeiro entre
seus pares a visitar os confins do território nacional e
registrá-los em fotografias e documentos cartoriais, Marc Ferrez
também desenvolveu equipamentos próprios e introduziu experiências
técnicas como as fotografias coloridas, por ele batizadas de
autocromo, em aperfeiçoamento à invenção dos irmãos Lumière.
Observar a evolução temporal de sua arte equivale a uma leitura da
história do Brasil e da trajetória da fotografia, dos processos
químicos mais primitivos aos avanços da tecnologia das câmeras,
lentes e processos de revelação e reprodução.
Expedições do
Império
Filho
mais jovem do francês Zéphyrin Ferrez, contando com mais quatro
irmãs e um irmão, ficou órfão de pai e mãe no Rio de Janeiro aos
sete anos. Mandado para a França, onde estudou até a adolescência,
retornou ao Brasil em 1859 e passou a trabalhar na Casa
Leuzinger, uma papelaria e tipografia que tinha começado a trabalhar com uma seção dedicada à
fotografia. Na Casa Leuzinger, Ferrez aprenderia as técnicas da
arte de fotografar com o alemão Franz Keller (1835-1890). Aos 21 anos, em
1865, investiu tudo que tinha para abrir a firma Marc Ferrez &
Cia., um estúdio fotográfico que o colocou entre os principais
profissionais da corte.
Em 1875, a
trajetória de Ferrez mudou radicalmente quando ele recebeu convite
para integrar, como fotógrafo, a expedição chefiada pelo geólogo
canadense Charles Frederick Hartt (1840-1878) e financiada pela
Comissão Geológica do Império. Hartt faria história como autor da
primeira obra rigorosamente científica sobre a geografia do Brasil –
“Geology and Physical Geography of Brazil” (1870). A Expedição
Hartt percorreu várias regiões do país e acendeu em Ferrez o gosto
pela aventura de desbravar e registrar os confins.
Depois da
experiência com a Expedição Hartt, Ferrez passa a investir
esforços nos estudos sobre geologia e geografia e, no ano de 1880,
decide encomendar na Europa a confecção de uma máquina fotográfica
por ele idealizada, para a execução de imagens panorâmicas em
grandes dimensões. Daí aos cargos oficiais de maior importância no
Império de Dom Pedro 2°, também entusiasta da fotografia, foi um
passo.
O destaque como
funcionário a serviço da nação continuaria nos primeiros tempos
da República. Reconhecido no Brasil e no exterior como fotógrafo de
paisagens, de obras públicas, de cartões postais e de retratos de
políticos e personalidades que se tornariam célebres, entre eles os
escritores Machado de Assis e Rui Barbosa, Ferrez realizaria a partir
de 1903 uma de suas séries mais reproduzidas até a atualidade: a
documentação completa das obras no Rio de Janeiro de instalação
da Avenida Central, hoje Avenida Rio Branco, dos antigos edifícios
às construções que foram erguidas no começo do século 20.
Araucárias,
no Paraná, em fotografia
datada de 1884 (no alto). Acima, grupo de escravos e seus filhos reunidos em fazenda de café na Serra da Mantiqueira, Sul de Minas Gerais, no ano de 1885 |
Qualidade formal
e documental
Marc
Ferrez obteve em sua época as mais importantes condecorações pela
excelência de seu trabalho fotográfico, tanto no Brasil como em
outros países, em diversas instituições internacionais, entre elas
os primeiros grandes prêmios em exposições nos EUA (Philadelfia,
1876) e na França (Paris, 1878), além de ter suas fotografias
exibidas com destaque na Exposição Universal de 1900, em Paris.
Várias de suas séries e álbuns também foram incorporadas desde o
final do século 19 aos acervos da Société
Géographique, sediada na França.
Como
se não bastasse, o nome de Marc Ferrez ainda está ligado ao
nascimento do cinema no Brasil: foi ele quem patrocinou a produção
dos primeiros filmes nacionais e instalou em 1907, no Rio de Janeiro,
o Cine Pathé, primeira sala de exibição permanente de espetáculos
cinematográficos. Ainda nesse ano, a Casa
Marc Ferrez & Filhos
tomaria para si a distribuição da grande maioria dos filmes
exibidos nas diversas salas de cinema que surgiram no Rio de Janeiro.
O Rio
Antigo segundo Marc Ferrez:
no alto, panorâmica da Ilha Fiscal na Baía da Guanabara, em 1885. Acima, a Avenida Central no Rio de Janeiro de 1910 |
A extraordinária
qualidade formal e documental da obra de Marc Ferrez na produção de
retratos de personalidades, além das panorâmicas, tanto as urbanas
quanto a paisagem natural que emoldura e envolve seus enquadramentos,
foi preservada intacta por seus familiares no último século. Depois
da morte do fotógrafo patriarca, o guardião de sua obra completa
foi Gilberto Ferrez (1908-2000), neto de Marc e um dos mais
destacados historiadores da iconografia brasileira e da obra dos
viajantes estrangeiros no decorrer da história do Brasil.
Desde a morte de
Gilberto, a guarda e a preservação dos arquivos dos Ferrez estão a
cargo de sua filha, Helena Ferrez, que mantém há décadas a
catalogação dos documentos da família. Os catálogos preservados
contam com um extenso patrimônio em suportes variados, no qual estão
incluídos desde as relíquias de Zéphyrin, pai de Marc e tataravô
de Helena, às clássicas séries de ensaios em panorâmicas
registradas em daguerreótipos e fotografias por Marc Ferrez.
Aos cuidados de
Helena Ferrez também estão os acervos reunidos durante décadas por
Gilberto Ferrez e todos os arquivos e filmes em negativo do filho de
Marc e pai de Gilberto, Júlio Ferrez (1881-1945) – pioneiro que
trouxe os primeiros equipamentos de cinema para o Brasil e realizou
as primeiras filmagens em território brasileiro. Os catálogos dos
Ferrez contam ainda com séries de correspondências, muitos álbuns
da intimidade da família, cadernos de anotações das várias
gerações, peças de artes plásticas e impressos em geral.
A maior parte deste
imenso acervo, entretanto, não faz parte do material reunido no
livro e na mostra “O Brasil de Marc Ferrez”. As imagens que
constam do livro e da mostra foram selecionadas da coleção
adquirida pelo IMS em 1998 – uma coleção que totaliza cerca de
5.500 fotografias diferentes, produzidas no século 19 e começo do
século 20, incluindo mais de 4 mil negativos originais em vidro.
Importante
como resgate da importância capital do trabalho de Marc Ferrez, o
livro, assim como a mostra e a manutenção do acervo pelo IMS,
também consolidam e estendem para além do círculo de especialistas
um trabalho que é um dos mais importantes legados visuais do Segundo
Império e da República Velha. Compreendida no período que vai de
1865 a 1918, a perícia técnica e a grande arte de Marc Ferrez se
mantêm, até os dias de hoje, como um dos registros fundamentais da
fotografia no Brasil e no mundo.
por José Antônio
Orlando.
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