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sexta-feira, 3 de março de 2017

Crise nas livrarias: Insistindo no erro até encontrar o fracasso

Haroldo Ceravolo Sereza*, 02/03/2017
A Livraria Cultura do Conjunto Nacional, em São Paulo | ©Divulgação
A Livraria Cultura do Conjunto Nacional, em São Paulo | ©Divulgação
Vamos dar uma volta antes de falar da crise das livrarias? Acho que vale a pena.


Essa história é de quando eu trabalhava n’O Estado de S. Paulo,
no começo dos anos 2000. Poucos anos antes a direção do Jornal da Tarde
implementou um modelo de fazer jornalístico que exigia a figura do
“personagem”. No jargão jornalístico, “personagem” é uma pessoa comum
que “encarna” a notícia. Por exemplo, se há um crescimento no número de
pessoas que estudam japonês na cidade, o “personagem” a ser apresentado é
um típico paulistano da Mooca, preferencialmente com sotaque italiano,
que gosta de ler mangás originais. Ele vai explicar porque acha
importante ler mangá. A notícia ideal nesse modelo não é “cresce o
número de escolas de japonês” em São Paulo, mas “Antonio Carcamano está
aprendendo japonês para ler mangás”. Se a inflação está crescendo por
causa dos hortifrútis, a “personagem” é a dona de casa que está parando
de comprar tomates por causa do preço. E por aí vai.


Parece bacana, né? Mas pense num jornal inteiro assim: fica repetitivo, superficial e, quase sempre, preconceituoso.


Bom, o fato é que a direção do Jornal da Tarde aproveitou um
momento de crescimento e apostou no modelo. Os mais animados falavam em
“new jornalism”, os mais burocratas gritavam aos repórteres: “Cadê a
personagem?! Eu quero a personagem”. Passados alguns meses, resolveram
fazer uma pesquisa sobre o que pensava o leitor. E a resposta foi
bastante simples: aquela história de personagem estava enchendo o saco:
os cadernos que haviam mergulhado no projeto eram os mais mal avaliados.


A direção do jornal não recuou. Insistiu no projeto. O resultado
prático? Bom, muita gente vai dizer que foi a internet que acabou com o
Jornal da Tarde, outros dirão que o Estadão nunca deixava ele crescer.
Mas o fato é que o Jornal da Tarde não existe mais...


Acabou a historinha. Vamos às notícias.


Comecei falando de jornalismo, mas eu queria mesmo é falar da
crise que as grandes redes de livraria estão vivendo. Duas notícias de
impacto recentes: a Saraiva estaria negociando a aquisição de ações da
Cultura (ou fusão com, como preferem alguns) e a Fnac está decidida a
deixar o Brasil.


Essa crise é uma bola cantada. Muita gente vai culpar a Amazon,
mas vamos pensar os casos isoladamente. As dificuldades da Cultura são,
de fato, as mais difíceis de lidar. Isso porque ela é, ainda, um canal
importante de venda de livros e está na memória afetiva de todo leitor
paulistano. Quem não comprou livros lá certamente desejou isso.


Quem acompanha o mercado há alguns anos sabe que o modelo de
crescimento da Cultura baseou-se em um tripé: abertura de lojas em
profusão (inclusive com financiamentos do BNDES), imposição de condições
cada vez mais duras aos fornecedores (ampliação do desconto e dos
prazos de pagamento) e venda de espaços nas lojas.


A venda de espaços começou quando eu ainda era apenas jornalista.
Foi adotada por Saraiva, Nobel e Laselva. A Cultura negava. Um dia
liguei para a Cultura, porque me chegara por e-mail sobre as condições e
preços das vitrines. A Cultura negou tudo. Disse que era mentira, que o
e-mail era falso. Deixei o jornal antes de a matéria ser concluída, mas
pouco depois a mesma apuração foi feita pela Folha, por outro repórter.
Nela, Pedro Herz, o dono do negócio, reconheceu o que dizia que não
existia e tratou como algo “normal”.


A reação da Cultura a meu telefonema mostrava que era incerto
aquele caminho. A livraria sempre se pautara por ser uma referência não
só comercial, mas também cultural. Quando a vitrine passa a ser
organizada não de acordo com o interesse cultural ou comercial imediato,
mas na lógica do marketing, a aura da Cultura começava a se perder.


Mas isso faz mais de treze anos. O processo de mercantilização da
livraria foi lento e progressivo. Em 2010, ajudei a organizar uma
Primavera na Cultura, uma exposição de editores independentes associados
à Libre (Liga Brasileira de Editoras) na rede.


Foi um trabalho pesado de negociação e a conversa, na verdade,
frustrante: não apenas o espaço reservado ficou muito aquém do
inicialmente imaginado, como a conversa de um dos diretores com os
editores, num dos eventos que organizamos, mostrou que as lojas da rede
seriam cada vez menos abertas, na prática, à edição independente. Nunca
mais repetimos o evento.


Anos depois, cheguei a discutir, numa reunião em minha editora,
quando a Amazon ainda ameaçava entrar no Brasil, um projeto de
valorização da bibliodiversidade com representantes da Livraria Cultura.
Não avançaram. A cada nova loja que a Cultura abria, mais distante
ficavam os compradores dos editores independentes. Mais prazo era
exigido e também mais descontos. Havia algo de errado no caminho
escolhido.


Uma visita a meia dúzia de lojas da Cultura mostra outro problema
da rede formada: ela não é homogênea. O problema da rede é que ela se
sustenta como projeto econômico quando a compra é centralizada. Isso
reduz os custos da operação e facilita as negociações com margens
maiores. O problema desse projeto é que ele exige que a ponta também
seja semelhante: o público de uma loja tem de ser parecido com o de
outra, para que a compra centralizada seja acompanhada por um resultado
de vendas positivo em todas as pontas da rede. Mas basta visitar as
lojas dos shoppings Vila Lobos, Iguatemi, Bourbon e Market Place e a
livraria do Conjunto Nacional, todas em São Paulo, para perceber que os
frequentadores são cultural e socialmente diversos o suficiente para não
procurarem os mesmos livros. Imagine então quando estamos no centro do
Rio, na livraria do cine Vitória, ou nas lojas de Fortaleza e Porto
Alegre...


Livraria Saraiva no ostentoso Shopping Higienópolis em São Paulo | ©Leo Neto
Livraria Saraiva no ostentoso Shopping Higienópolis em São Paulo | ©Leo Neto

A Saraiva definitivamente não é minha livraria como consumidor e sequer
vende os livros da Alameda (mesmo no site). A rigor, ela não é uma
livraria, mas uma loja que vende livros, o que parece a mesma coisa, mas
não é. Porém, a seu favor, há uma homogeneidade nas lojas suficiente
para que os mesmos livros fiquem bem confortáveis no shopping
Higienópolis ou West Plaza. Em Brasília, Rio, Salvador: toda vez que vou
a uma Saraiva, sinto que estou num lugar para um público que existe em
todos esses lugares; quando vou à Cultura do Iguatemi, eu não consigo
imaginar como um espaço tão grande pode render, vendendo livros, o
suficiente para se manter. Especialmente para um público que vai ao
shopping para comprar bolsas de milhares de reais – não há livros nesse
preço, como sabemos (caro no Brasil é a bolsa Louis Vuitton,
registre-se).


Ainda não falei sobre a Fnac, talvez porque seja muito difícil
pensar a Fnac hoje como uma livraria. A livraria era apenas um puxadinho
num negócio de venda de aparelhos eletrônicos a preços altos e
qualidade média. Como livraria, que é o que nos interessa, a Fnac sequer
era um negócio: os livros estavam lá talvez por tradição, talvez porque
o modelo foi pensado ou adaptado unindo as duas pontas. Mesmo as
iniciativas culturais, como o prêmio Fnac-Maison de France, foram
escasseando. Assim, a Fnac há muito tempo não era um local de venda a
sério de livros.


As dificuldades dessas grandes redes, por outro lado, são uma
oportunidade para as livrarias independentes. Isso está acontecendo nos
Estados Unidos e pode ocorrer aqui também.


Não se trata, no entanto, de uma tarefa simples. Passa por uma
leitura mais refinada do público frequentador e de como incrementá-lo
organicamente, da manutenção de um acervo e de uma seleção de livros que
seja interessante para o comprador habitual de livros e não apenas para
o leitor de best-sellers (muitas vezes a mesma pessoa, diga-se, mas que
pende um dia para um lado, outro para o outro) e, sobretudo, pela
convicção de que os títulos disponíveis e a informação precisa são mais
relevantes do que um bom café ou um giro de capital rápido, mas infiel.


A livraria como um espaço cultural, com sua lógica tradicional,
de encontro e de surpresa que a internet não pode proporcionar: esse é o
desafio que está posto para quem quer se recuperar e para quem quer se
construir como alternativa.


Evidentemente esse assunto não se esgota assim: a crise é uma
ótima oportunidade também para repensarmos a urgência da lei do preço
único do livro, que as redes tanto bombardearam, criando dificuldades
para si mesmas, que agora se mostram tão explícitas.


Mas esse tema fica para um outro texto.




fonte:  PublishNews

sexta-feira, 10 de julho de 2015

A História reescrita e a censura da ficção



Se há uma obra de ficção que
indiscutivelmente impactou-me como leitora e escritora de ficção foi o
grandioso épico “E O Vento Levou”, de Margaret Mitchell, que li ano
passado. A escrita magistral brinda-nos com personagens descritos
brilhantemente tanto no aspecto físico como emocional e extremamente bem
construídos, bem como falas inesquecíveis vindas muitas vezes de
personagens secundários (Beatrice Tarleton, a criadora de cavalos, por
exemplo) e um bem construído background histórico da Guerra de Secessão (1861-1865) sob a ótica dos estados Confederados (sul dos EUA).
E é exatamente devido ao momento
histórico retratado tanto pelo livro como pelo filme nele baseado que os
militantes da praga politicamente correta têm cada dia mais fomentado a
celeuma que se ergue contra esse grande clássico da literatura
americana. No artigo “‘Gone With the Wind’ should go away with the Confederate flag”, Lou Lomenick sugere que “E o Vento Levou” deveria ser banido por se tratar, segundo ele, de um obra “racista”.
Uma breve observação. Desde o bárbaro
atentado a uma igreja protestante em Charleston perpetrado por um
psicopata racista no qual 9 pessoas morreram, muitos na esquerda
americana têm insistido com a ideia de que é preciso banir dos olhos do
público a bandeira que representou os então Estados Confederados durante
a Guerra de Secessão, pois ela incentivaria o racismo, uma vez que o
assassino tinha fotos com a dita bandeira. Bem, isso é querer negar a
história. Ainda que sim as grandes plantations do sul dos EUA
utilizassem mão-de-obra escrava e não quisessem abrir mão de tal forma
de produção, a bandeira representa um fato histórico ocorrido e que
exatamente por isso não pode e não deve ser negado. E mais que isso:
deve ser conhecido amplamente para que jamais se repita. Acredito que
ostentar a bandeira Confederada por si só não faz de alguém um racista
assim como o não ostentá-la não quer dizer que o sujeito não seja
racista.
GoneWithTheWindÉ
seguindo esse mesmo raciocínio que Lomenick propõe banir “E O Vento
Levou”. Segundo ele, a história “transmite a ideia de que a Guerra Civil
era uma nobre causa perdida e que os yankees (americanos do
norte do país) e simpatizantes foram grandes vilões tanto na guerra como
na reconstrução”. Bem, “E O Vento Levou” retrata a Guerra de Secessão
sob a ótica dos fazendeiros do sul dos EUA, que faziam uso de
mão-de-obra escrava na lavoura e na pecuária, de modo que a ficção é
verossímil, ou seja, condizente com a realidade daqueles personagens.
Nesse contexto, necessariamente os personagens sulistas sentem-se
violados pelos soldados do norte: eles estupraram suas mulheres,
roubaram suas casas e mantimentos, queimaram suas terras – todos atos
típicos de uma guerra, é claro, mas evidentemente bárbaros. E é óbvio
que para aqueles personagens a guerra era uma causa nobre, pois era o
modo de vida deles que estava em jogo. Hitler também julgava a Segunda
Guerra uma causa nobre, quem entra em uma guerra sempre achará nobre a
sua própria causa, por mais pérfida que ela seja. Assim, ainda que seja
abominável defender a escravidão, os personagens de uma obra ambientada
naquele período e naquele lugar, naturalmente a defenderiam.
Surpreendentemente, no livro ao menos, subentende-se que o protagonista,
Rhett Butler é um abolicionista que se cala para não sofrer retaliações
em meio aos que pensam diferente dele.
Sim, o filme não faz referência à KKK
(Ku-Klux-Klan), mas o livro sim. O livro a retrata como algo bom?
Depende. As mulheres consideravam perigoso envolver-se com aquilo, porém
o envolvimento é, dentro da trama ao menos, justificado diante a
política estabelecida durante a reconstrução segundo a qual autoridades
fariam vista grossa a crimes cometidos por negros recém-libertos. Para
mim, em particular, isso não é uma boa justificativa para se criar uma
organização como a KKK, pois não há justificativa nenhuma aceitável para
isso. A grande questão exposta na narrativa que Lomenick não menciona é
que o livro claramente mostra a Klan como surgida no seio do partido
Democrata, ao qual eram vinculados os grandes produtores rurais do sul.
Sim, o mesmo Partido Democrata que hoje posa de defensor de minorias e
monopolista das virtudes foi contrário à abolição da escravidão e
fundador da KKK, enquanto a abolição foi uma causa abraçada e
ferrenhamente defendida pelos Republicanos desde a fundação do partido,
sempre ligado a causas afins ao Liberalismo Clássico. Racistas não são
os Republicanos, como gostam de pregar os Democratas, mas sim estes, que
fomentam dia após dia a luta de classes em seus discursos inflamados
que estimulam negros a odiar brancos por causa de um passado que na
verdade pertence a toda a humanidade, visto que a escravidão foi
verificada desde o início dos tempos. E mais ainda se considerarmos que
em países socialistas populações inteiras são escravas de seus governos
autoritários.
Sobre o livro, ainda digo mais. Mammy, a
escrava do lar dos O’Hara, que dizia orgulhosa que nasceu na casa
grande dos Robillard e jamais pisou em uma senzala (e que se recusava a
trabalhar no campo mesmo quando as senhoras semearam e colheram algodão
com as próprias mãos), é retratada como uma das personagens mais
brilhantes e queridas pelas demais personagens da história. Mais que
isso, Mammy é astuta, mas também dura com aqueles com quem ela se
preocupava. Nenhum negro no livro é descrito como mera máquina de
trabalho, mas como seres humanos dotados de sentimentos, de
personalidade. Dizer que essa é uma história racista porque eles eram
escravos em uma época que assim infelizmente o era na vida real? A
propósito, a própria Hattie McDaniels, grande atriz que deu vida a Mammy
no cinema, foi frequentemente boicotada por movimentos negros sob a
alegação de que ela “ajudava a manter o estereótipo servil do negro na
sociedade ao aceitar representar domésticas e serviçais”, ao que a atriz
reagia dizendo que preferia ganhar 700 dólares por semana para
interpretar uma criada a ganhar 7 dólares por semana para ser uma
criada. Big Sam, outro dos personagens egressos dos campos de Tara
salvou Scarlett de ser estuprada por negros que eram bandidos. Havia
negros e brancos bons e maus nessa história, tal como na vida real e
negar isso é desconhecê-la.
Banir a história mais épica escrita no
século XX porque ao retratar uma realidade da época que ela descreve
sensibilidades são feridas é levar a novilíngua a um novo nível. É
claramente querer reescrever a história só porque há episódios feios
nela. E isso não é exclusividade do atual momento dos EUA. O que foi a
“Comissão da Verdade” senão uma tentativa de reescrever a história do
Brasil? Desde quando uma comissão que se pretende “da verdade” apura
apenas um lado do conflito? Por que apenas militares que cometeram
crimes durante o Regime Militar foram rotulados como “malvados”, quando é
sabido que os terroristas de esquerda do período não tiveram a morte de
suas mais de 100 vítimas sequer apuradas? Porque construir a narrativa
histórica que será impressa nos livros de história, no caso tratando os
terroristas como democratas que sofreram nas mãos de autoritários
bárbaros e de maneira unilateral, é o que irá determinar o sucesso da
militância no futuro.
Portanto, considerar “E o Vento Levou”
um filme racista devido ao fato de retratar os sulistas democratas (sim,
eram todos democratas, os republicanos que desde o início defenderam o
fim da escravidão e sim, foram os democratas que criaram a KKK)
defendendo a escravidão no período em que historicamente eles de fato
defendiam a escravidão não é só uma excrescência, é doentio. Fazia parte
da realidade daquele período aquelas pessoas terem escravos; fazia
parte da realidade das pessoas daquele período ter saudades de como
levavam a vida antes da guerra (lembrando que os soldados do norte
muitas vezes atearam fazendas inteiras com famílias no interior da casa
grande).
Independentemente do quão condenável
seja o ponto de vista de um personagem, nós que escrevemos ficção
devemos ser livres para criarmos qualquer espécie de personagem e, mais
que isso, não podemos tolerar que limitem nossa liberdade de expressão. E
quando escrevemos algo tendo como pano de fundo algum grande evento
histórico, não podemos ser tolhidos de expressar a visão de nossos
personagens de acordo com a posição que ele ocupa dentro daquele
contexto histórico. Vamos banir filmes que retratem o holocausto só
porque necessariamente haveria personagens nazistas que o defenderiam?
NÃO! JAMAIS! Isso seria falsear a realidade por trás de uma narrativa
ficcional, porém verossímil. E jamais devemos conceder a ninguém a
prerrogativa de reescrever a história, sobretudo tentando esconder o que
nefasto aconteceu.




Thaís Gualberto, bacharel em Ciências Econômicas pelo Instituo Brasileiro de Mercados e Capitais (Ibmec-RJ).




A História reescrita e a censura da ficção | Reaçonaria

sábado, 4 de julho de 2015

Nenhum escritor é, apenas, uma máquina de produzir palavras


m escritor é, apenas, uma má



Georges Simenon, criador do famoso Comissário Maigret: exemplo de disciplina
 Rodrigo Gurgel


Cada
autor descobre, com a experiência, a forma de escrever mais adequada à
sua personalidade. É preciso, antes de tudo, não lutar contra as
próprias idiossincrasias. E encontrar, sem desprezá-las, a disciplina
que resultará numa produção constante, diária.

Poucos
escritores, entretanto, alcançam um comportamento metódico semelhante
ao de Georges Simenon, o famoso criador do Comissário Maigret. Primeiro,
ele escolhia, em sua imaginação, uma atmosfera: uma paisagem, um bairro
da infância, certa estação do ano em determinada cidade… Ali, inseria
um tema, uma das preocupações que trazia consigo — nada específico, mas
que se apresentasse como um problema. Tendo acrescentado o tema à
paisagem, vinham os personagens, imaginados ou baseados em pessoas
reais. Esses três elementos se unem, então, e começam a se transformar
no romance. Dois dias depois, sem escrever uma nota, Simenon tem o
esboço pronto em sua mente — precisou recorrer apenas a algumas listas
telefônicas (para encontrar o nome dos personagens) e a um mapa da
cidade escolhida.

O
mais impressionante, contudo, ainda está por ocorrer. Ele diz: “Na
véspera do primeiro dia, sei o que vai acontecer no primeiro capítulo.
Daí, dia após dia, capítulo após capítulo, descubro o que vem em
seguida. Depois de iniciado um romance, escrevo um capítulo por dia, sem
nunca perder um dia. Como é um esforço violento, tenho de seguir o
ritmo do romance”.

Parece
fácil, não é mesmo? Mas, acreditem, não há milagres. Se ele, por algum
motivo, fosse obrigado a interromper o processo; se ficasse, por
exemplo, doente por 48 horas, tudo se perderia. Seria obrigado a jogar
fora os capítulos produzidos — e jamais retornaria ao romance.

O
que um método oferece como solução, também cobra na forma de uma
fraqueza. Nenhum escritor é, apenas, uma máquina de produzir palavras e
sentenças.




Rodrigo Gurgel / Nenhum escritor é, apenas, uma máquina de produzir palavras - Rodrigo Gurgel

sábado, 20 de junho de 2015

Roteiro para um artista pop


 
American pop artist Keith Haring.

 

by Leo


Fase 1 – O artista mora num conjugado e divide um ateliê/estudio/escritorio
com outros cinco. Nesse momento a arte é tudo, inclusive porque não
sobra dinheiro para mais nada. Tem que pedir ajuda aos pais e aos amigos
para pagar o aluguel do conjugado, e, principalmente, a conta do
boteco. O que importa é criar.

“O mundo precisa da minha arte”, sonha o artista.
Fase 2 – O artista produz muito mas não vende nada. Reclama das editoras,
das gravadoras, dos marchands. O sistema é inimigo da arte, brada no
conjugado, para júbilo dos companheiros. “Abaixo Romero Britto, Paulo
Coelho e os sertanejos!”. Para mudar o sistema o artista organiza o
movimento, forma coletivos, lança manifestos. Vira o rei do alternativo,
do underground, do off-Broadway.

“A arte é subversiva” acredita o artista
Fase 3 – O artista aparece nos radares e é captado pelas antenas. Seu nome é
citado em todas as conversas. Faz sucesso nas redes sociais. Chega a
hora do primeiro show/exposição/livro. É incensado pelos críticos de
vanguarda, que se tornam seus grandes amigos. Ganha fama de cult e
chovem tapinhas nas costas.

“É tudo tão rápido...” divaga o artista
Fase 4 – O artista, para dar conta do sucesso, contrata assessores, que
trocam suas camisetas por pólos, o All Star por Prada e os antigos
companheiros por contatos influentes. Assina o seu primeiro contrato com
uma gravadora/editora/galeria. Sua agenda agora é repleta de festas,
reuniões e eventos. Aconselhado pelo staff, dá entrevistas para
revistas, blogs, televisões, jornais, sempre falando o que querem ouvir.
O sucesso só aumenta e a conta bancária também. O artista dá um perdido
nos amigos do boteco e passa a frequentar os bares da moda.

“Quem podia imaginar que espumante é tão bom? ” se surpreende o artista
Fase 5 – O artista se torna uma celebridade. É o oráculo da cidade, dá
opinião sobre a maioridade penal, o desempenho do Neymar e o fim da bala
Juquinha. Recebe homenagens de todo lados e comparece até em
inauguração de banheiro químico. Com tantos compromissos mal sobra tempo
para o trabalho. Não importa.

“Viver bem é a grande arte!” ensina o artista
Fase 6 – O artista domina a cena. Aconselhado por seus assessores, investe
no que o público gosta, no que dá certo. Aparecem as primeira críticas
negativas mas ele não fica sabendo, não tem mais tempo para essas
coisas. Na mansão com vista para o mar recebe outros artistas famosos,
incluindo Paulo Coelho, Romero Britto e os sertanejos.

“São tão simpáticos!” constata o artista.
Fase 7 – O artista, devido a um descuido da assessoria, tem acesso às
críticas. O consideram repetitivo e ultrapassado. Não dá atenção. Agora
acha os críticos incultos, despreparados e desrespeitosos.

“Bando de invejosos” desdenha o artista.
Fase 8 – O artista, no seu luxuoso estudio/ateliê/escritório, procura
culpados pela fuga do prestígio. Está indignado com a cena
contemporânea, pensa que não há mais respeito, que qualquer um acha que é
artista. Antes isso não acontecia. Reclama de tudo, principalmente da
nova geração.

“ Minha arte não precisa desse mundo” conclui o artista





Roteiro para um artista pop | TONTOMUNDO

quinta-feira, 7 de maio de 2015

A Arte Contemporânea é uma farsa: Avelina Lésper





Com a finalidade de dar a conhecer seus argumentos sobre os porquês da arte contemporânea ser umaarte falsa“, a crítica de arte Avelina Lésper apresentou a conferência “El Arte Contemporáneo- El dogma incuestionable” na Escuela Nacional de Artes Plásticas (ENAP)sendo ovacionada pelos estudantes na ocasião.
 A arte falsa e o vazio criativo
A
carência de rigor (nas obras) permitiu que o vazio de criação, o acaso e
a falta de inteligência passassem a ser os valores desta arte falsa,
entrando qualquer coisa para ser exposta nos museus
A crítica explica que os objetos e valores estéticos que se apresentam como arte são aceites em completa submissão aos princípios de uma autoridade impositora. Isto faz com que, a cada dia, formem-se sociedades menos inteligentes aproximando-nos da barbárie.
O Ready Made
Lésper aborda também o tema do Ready Made, expressando perante esta corrente “artística” uma regressão ao mais elementar e irracional do pensamento humano, um retorno ao pensamento mágico que nega a realidade. A arte foi reduzida a uma crença fantasiosa e sua presença em umero significado. “Necesitamos de arte e não de crenças”.
Génio artístico
Da mesma maneira, a crítica afirma que a figura do “génio”, artista com obras insubstituíveis, já não tem possibilidade de manifestar-se na atualidade. “Hoje em dia, com a superpopulação de artistas, estes deixam de ser prescindíveis qualquer obra substitui-se por outra qualquer, uma vez que cada uma delas carece de singularidade“.
O status de artista
A substituição constante de artistas dá-se pela fraca qualidade de seus trabalhos, “tudo aquilo que o artista realiza está predestinado a ser arte, excremento, objetos e fotografias pessoais, imitações, mensagens de internet, brinquedos, etc. Atualmente, fazer arte é um exercício ególatra; as performances, os vídeos, as instalações estão feitas de maneira tão óbvia que subjuga a simplicidade criativa, além de serem peças que, em sua grande maioria, apelam ao mínimo esforço cuja acessibilidade criativa revela tratar-se de uma realidade que poderia ter sido alcançada por qualquer um“.
Neste sentido, Lésper afirma queao conceder o status de artista a qualquer um, todo o mérito é-lhe dissolvido e ocorre uma banalização. “Cada vez que alguém sem qualquer mérito e sem trabalho realmente excepcional expõe, a arte deprecia-se em sua presença e concepção. Quanto mais artistas existirem, piores são as obrasA quantidade não reflete a qualidade“.
 Que cada trabalho fale pelo artista
O artista do ready made  atinge a todas as dimensões, mas as atinge com pouco profissionalismo; sfaz vídeo, não alcança os padrões requeridos pelo cinema ou pela publicidade; sfaz obras eletrónicasmanda-as fazer, sem ser capaz de alcançar os padrões de um técnico mediano; senvolve-se com sons, não chega à experiência proporcionada por um DJ; assume que, por tratar-se de uma obra de arte contemporânea, não tem porquê alcançar um mínimo rigor de qualidade em sua realização.
Os artistas fazem coisas extraordinárias e demonstram em cada trabalho sua condição de criadoresNem Damien Hirst, nem Gabriel Orozco, nem Teresa Margolles, nem a imensa e crescente lista de artistas o são de fato. E isto não o digo eu, dizem suas obras por eles“.
 Para os Estudantes
Como conselho aos estudantes, Avelina diz que deixem que suas obras falem por eles, não um curador, um sistema ou um dogma.Sua obra dirá se são ou não artistas e, se produzem esta falsa arte, repito, não são artistas”.
O público ignorante
Lésper assegura que, nos dias que correm,
a arte deixou de ser inclusiva, pelo que voltou-se contra seus próprios
princípios dogmáticos e, caso não agrade ao espectador, acusa-o de “
ignorante, estúpido e diz-lhe com grande arrogância que, se não agrada é por que não a percebe“.
O espectador, para evitar ser chamado ignorante, não pode dizer aquilo que pensa, uma vez que, para esta arte, todo público que não submete-se a ela é imbecil, ignorante e nunca estará a altura da peça exposta ou do artista por trás dela.Desta maneira, o espectador deixa de presenciar obras que demonstrem inteligência”.
Finalizando
Finalmente, Lésper sinaliza que a arte contemporáneé endogámica, elitista; com vocação segregacionista, é realizada para sua própria estrutura burocrática, favorecendo apenas às instituições e seus patrocinadores. “A obsessão pedagógica, a necesidade de explicar cada obra, cada exposição gera a sobreprodução de textos que nada mais é do que uma encenação implícita de critérios, uma negação à experiência estética livre, uma sobreintelectualização da obra para sobrevalorizá-la e impedir que a sua percepção seja exercida com naturalidade“.
A criação é livre, no entanto a contemplação não é. “Estamos diante da ditadura do mais medíocre”


fonte: Vanguardia
 A Arte Contemporânea é uma farsa: Avelina Lésper | Incubadora de Artistas

sábado, 25 de abril de 2015

Tudo que penso sobre o seriado Chapa Quente e resolvi comentar

Chapa Quente – São Gonçalo


Por Matheus Graciano •

“Falem bem ou falem mal, falem de mim”. A frase que está na boca de muita gente é um daqueles ditados populares que me fizeram olhar com mais carinho para o seriado “Chapa Quente”. Como diria o outro, “nunca antes na história” de São Gonçalo tivemos tanta exposição. Tudo bem, não é da melhor forma que sonhamos, mas está lá, a cidade exposta para algumas milhões de pessoas em todo o Brasil.
Há exatos dois anos atrás, publiquei um texto chamado “O Cinturão Fluminense”. Nele, o comentário principal era sobre esse grande “cinturão” que as cidades metropolitanas e bairros da zona norte, oeste e subúrbio do Rio fazem ao redor da região que vai do centro carioca até a Barra, basicamente, o centro financeiro e governamental da ex-capital do Brasil.
Dentre todas as cidades da região metropolitana, São Gonçalo se destaca no cinturão fluminense. O motivo não é nobre, porém explica muito: somos uma cidade decadente. Sim, decadente. Num passado longínquo, entre os anos 30 e 50, a cidade cresceu muito com suas atividades industriais, que deu origem ao nome “Manchester Fluminense”, praticamente triplicando a população de 1940 a 1960. Éramos vizinhos da capital do estado, Niterói, sem falar da capital federal, a cidade do Rio. Com a mudança para Brasília, muita coisa se foi, inclusive o dinheiro. E aquela cidadezinha industrial, com problemas crescentes, continuou a receber gente sem desenvolver sua estrutura. O resultado é o que temos hoje.

Aí, você me pergunta: o que o seriado “Chapa Quente” tem a ver com tudo isso?

Um belo dia, o célebre Agostinho Carrara disse em rede nacional: “eu sou de Alcântara”. O seriado “A Grande Família”, que ficou no ar de 2001 a 2014, inaugurou a face gonçalense na TV. Muita das vezes, Agostinho era o centro da trama, fazendo com que muita gente viesse me perguntar se Alcântara era outra cidade… bem, definitivamente, Alcântara ganhou seu espaço em algumas mentes. Pelo visto, a sacada da equipe do redator Cláudio Paiva foi um teste para o atual Chapa Quente, também assinado por ele.
Agostinho Carrara em Alcântara
Agostinho Carrara (Pedro Cardoso) no dia em que foi à Alcântara da vida real. Fonte: GShow.


Minha impressão é que Paiva percebeu São Gonçalo como o reflexo real do estado do Rio, que talvez reflita também boa parte da realidade social brasileira. Nós temos a estética dos subúrbios, que é bem diferente das “favelas” nos morros, cuja imagem já está gasta, é muito forte, violenta e as pessoas logo pensam no tráfico, na bala perdida e nos demais problemas sociais.
As imagens que temos sobre nós mesmos são muito diferentes. A decadência recente de São Gonçalo ainda vive na memória de muitos. Algumas pessoas ainda se lembram, por exemplo, das transmissões televisivas do baile de carnaval que acontecia no Tamoio. Por outro lado, a geração mais nova, em especial aqueles que já vivem em lugares que cresceram recentemente, com problemas estruturais, vêem a cidade de outra forma. Comparativamente, Duque de Caxias e Nova Iguaçu, mesmo com tantos problemas na baixada fluminense, saíram do zero, experimentando o crescimento apenas, por mais lento que ele seja.
A crítica dos gonçalenses à estética do Chapa Quente, se justifica pela versão que a produção da TV Globo resolveu retratar. Definitivamente, pegaram um dos piores lados da cidade. Porém, fica a minha dúvida: qual é a São Gonçalo mais verdadeira? A antiga, que vai de Neves ao Centro, o grande Alcântara, os arredores de Itaúna, bairros que beiram a BR-101, Ipiíba, Arsenal e pista da Rodovia Amaral Peixoto ou Jardim Catarina? São muitas cidades! Você conseguiria me responder qual é a cidade real?
Lúcio Mauro Filho, Leandro Hassum e Ingrid Guimarães estrelam a série Chapa Quente. Fonte: Divulgação Tv Globo
Lúcio Mauro Filho, Leandro Hassum e Ingrid Guimarães estrelam a série Chapa Quente. Fonte: Divulgação TV Globo

Minha crítica mais tensa fica sobre a cor dos atores. Todos brancos. São Gonçalo é muito misturado, tal como o Brasil. Se fosse “favela”, iriam colocar todos os negros do elenco global. Sacou o ligeira diferença?
Independente da sua opinião, Chapa Quente vai ajudar a colocar São Gonçalo no mapa. Se nos incomodamos com a visão da TV, cabe a nós melhorarmos a cidade. Somos a 16ª maior cidade do Brasil e a referência de um caldeirão de diferenças sociais. Somos a cidade média reflexo dos problemas cotidianos e, se quisermos, podemos ser um bom exemplo também. A TV já reconheceu nossa importância. Só falta a gente entender isso.

quinta-feira, 19 de março de 2015

Halleymania: 30 anos depois


Por Marcus Ramone

Como um brasileiro transformou um corpo celeste no maior fenômeno comercial da história da astronomia e despertou o interesse da Marvel.


Marcelo DinizO publicitário mineiro Marcelo Diniz sofre de bipolaridade. Em seu último livro, Crônicas de um bipolar (Record, 2010), ele revelou algumas situações inusitadas que protagonizou como consequência do transtorno.
Foi assim em 1980, do alto de seus 32 anos, quando trabalhava em um gigante da indústria de cigarros e teve um insight, “de acordo com uma característica da bipolaridade, que é ter a cabeça sempre a mil, procurando novas ideias”, como disse ao Universo HQ.
Naquela época, as primeiras reportagens sobre a nova visita do cometa Halley às proximidades da Terra começavam a surgir em jornais e TVs. Mas o assunto ainda não despertava o interesse que viria a ter mais tarde.
A Era dos Halley
“Eu pensava em lançar uma Butique Hollywood, vendendo roupas e artigos promocionais com a marca dos cigarros Hollywood. Era um projeto de diversificação e licenciamento. Estava com a teoria bem clara na cabeça, quando li numa revista que o cometa Halley voltaria em 1986 e inspiraria músicas e suvenires e que crianças seriam batizadas com o seu nome”, relata Diniz.
Bastou isso para o publicitário partir em busca da realização da ousada empreitada de capitalizar com o viajante cósmico. “Pensei: quem tiver essa marca estará rico. E fui atrás de um advogado para saber se era possível. Não só era, como estava livre para registro no Brasil. E, nos Estados Unidos, só não estava livre para isqueiros e perfumes, em dois produtos que existiam desde 1910″, revela.
Ainda em 1980, Diniz juntou o dinheiro que tinha, pediu mais emprestado e arregimentou o sócio Luiz Felipe Tavares para criar a Marcelo Diniz Estratégias de Marketing Ltda. e fazer todos os registros possíveis da marca Halley no País.
Dois anos depois, fez o mesmo nos Estados Unidos, na França e na Alemanha.
Cometa Halley
Convocando o argumentista Luiz Antonio Aguiar e o ilustrador Lielzo Azambuja, Diniz criou o esteio do projeto: a Família Halley, de quem dependia integralmente a continuidade da empreitada.
Os personagens ganharam nome, visual e conceito que, via de regra, acompanhavam a marca, formando os pilares sobre os quais se montou o projeto e que se completavam com a mensagem de harmonia pregada pela família espacial.
Viajantes cósmicos, os Halley eram os únicos sobreviventes do planeta Hydron, devastado por uma colisão com um mundo desabitado e do qual sobrara apenas a calota polar, que se transformara no cometa Halley.
Depois de encontrar o planeta Terra e se afeiçoar aos seus habitantes, a família resolveu adotar o nome com o qual os terráqueos batizaram o pedaço desgarrado de Hydron.
Assim nasceram Big Halley, Halley, Halleyxpert, Halleyfante, Halleygante, Halleyluiah, Halleyxandra, Halleyzinha, Halleyzótica e Halleygria, uma trupe cujos nomes de pronúncia fácil ganharam o apelo imediato que garantiu à franquia o sucesso almejado.
Em 1985, um ano antes do que se esperava ser a chegada triunfal do cometa, a Família Halley começou sua trajetória pela mídia, por meio de um contrato com a TV Globo que levou os personagens aos programas Balão Mágico – no qual o Halleyfante, uma espécie de paquiderme robô, virou atração fixa -, Fantástico, Globo Repórter e Minuto Halley (“foguetinhos” diários na programação) e ao musical A Era dos Halley, que contou com a participação de diversos nomes da MPB e do rock brasileiros e foi lançado em LP.
Começava ali a halleymania.
Febre consumista
Materiais escolares, tênis, óculos, chicles de bola, iogurtes, brinquedos, artigos de vestuário e diversos outros produtos, incluindo uma linha de joias finas da H.Stern, todos estampando o nome ou a imagem da Família Halley, começaram a invadir o mercado em 1985.
Ao todo, foram 53 contratos de licenciamento para mais de dois mil produtos, resultando em um faturamento imediato de cerca de dez milhões de dólares – na época, uma cifra ainda mais espantosa do que é hoje.
No mesmo ano, a Família Halley estreou nas tiras de quadrinhos, publicadas diariamente no jornal O Globo. Meses depois, em outubro, chegou aos gibis na série bimestral A Era dos Halley, que na primeira edição oferecia de brinde um bottom.
A Era dos Halley # 2A Era dos Halley # 3
A revista trazia, em cada edição, duas histórias em quadrinhos – escritas por Luiz Antonio Aguiar, Ives do Monte Lima e Salete Brentan, com desenhos de Napoleão Figueiredo e Roberto Kussumoto -, além de passatempos relacionados ao Halley, textos sobre astronomia e tecnologia espacial e a seção Jornal do Cometa, com as últimas novidades sobre o astro da década.
Foi publicada até junho de 1986, quando o cometa Halley já rumava para outras galáxias.
E não ficou só nisso. Um longa-metragem com atores chegou a ser pré-produzido, mas não vingou.
A exposição e o sucesso da marca Halley não passaram despercebidos em outros países. No dia 8 de maio de 1986, a edição do jornal norte-americano New Scientist destacou o furor causado pelo cometa no Brasil, potencializado pela criação de Marcelo Diniz, agora celebrado como um empresário de visão telescópica – com o perdão do trocadilho necessário.
Nesse período, a Warner Licensing Corporation já havia assinado com a Marcelo Diniz Estratégias de Marketing uma carta de intenções para licenciar a marca Halley pelo mundo.
E a Marvel Entertainment, dona dos direitos sobre os super-heróis Homem-Aranha, X-Men, Hulk e outros, assinou um contrato de opção para produzir desenhos animados da Família Halley. “Mas poderia pedir, se quisesse, a extensão para longas-metragens live-action ou mesmo quadrinhos”, afirma Diniz.
Ele confessa que, se isso acontecesse, seria uma conquista pessoal. “Eu adoraria. Desde criança, lia tudo que era Disney, Bolinha e Luluzinha e, à medida que fui crescendo, os super-heróis. Mas o meu preferido era o Fantasma. Ainda gosto de quadrinhos, mas, hoje em dia, prefiro cinema”, conta.
Diniz também acredita que a Marvel teria um papel importante na longevidade da Família Halley.
“O planejamento de marketing previa que o filme, as histórias em quadrinhos e os desenhos animados dessem vida longa ao projeto, muito tempo após a passagem do cometa. Os norte-americanos condicionaram os investimentos em produção ao sucesso do evento. Como o Halley não foi visto no hemisfério norte, eles desistiram”, afirma. “As produções daquela época, sem os efeitos especiais necessários, não eram suficientes para manter vendas de produtos inspirados em um evento que frustrou o público. Se tivéssemos os desenhos animados da Marvel, talvez ainda desse para continuar.”
No final das contas, o cometa havia sido anjo e demônio para Diniz.
Fiasco no céu
O astrônomo Edmond Halley (1656 – 1742) emprestou seu nome ao cometa mais famoso deste lado da Via Láctea.
Depois de descobrir que os cometas avistados em 1531, 1607 e 1682 eram um só, ele previu que a órbita completada em torno do Sol a cada 76 anos o traria de volta em 1758. O cientista morreu antes de ver sua previsão concretizada.
A visita de 1910, em que a cauda do Halley tocou a atmosfera terrestre e apresentou um espetáculo inesquecível para quem teve o privilégio de assistir, provocou em 1986 uma grande expectativa, que se mostrou frustrada.
Naquele ano, o Brasil ainda saboreava a recente retomada da democracia institucional, depois de mais de duas décadas sob as rédeas do regime militar.
O pacote econômico batizado de Plano Cruzado fora lançado com a firme missão de criar uma moeda nacional forte e, principalmente, acabar com o monstro da inflação, que minava o poder de compra dos brasileiros.
A Era dos Halley # 4A Era dos Halley # 6
No esporte, o povo se unia na torcida para a seleção de futebol, comandada pelo técnico Telê Santana, conquistar seu quarto título da Copa do Mundo.
E o cometa Halley, a sensação daquele momento, atingia o periélio – ponto mais próximo do Sol -, para a alegria dos que continuavam acreditando ser possível observá-lo em sua plenitude, a olho nu.
Mas foram necessários somente poucos meses para tudo desmoronar e outra realidade bater à porta.
O índice de popularidade do presidente da República despencou vertiginosamente, o plano econômico fracassou e a Seleção Brasileira foi eliminada do Mundial realizado no México.
A pá de cal veio do espaço: o cometa Halley foi embora, sem nunca ter vindo, marcando o fim de um fenômeno comercial e de marketing jamais visto no planeta – antes ou depois – na história da astronomia.
Pouca gente o viu, de fato. E somente com a ajuda de uma boa luneta – nem de longe as que eram vendidas feito água em lojas e nos camelôs – e de um mapa celeste fácil de decifrar, foi possível testemunhar a aparição do cometa, que se mostrou um reles chumaço de algodão no meio de estrelas muito mais brilhantes no céu.
Marcelo Diniz não contava com isso. Não há como saber com certeza, mas dificilmente a passagem do Halley seria tão lembrada no Brasil, décadas depois, se o publicitário não houvesse deflagrado a halleymania que marcou os anos 1980 no País.
No entanto, poderia ter sido melhor. “Não ‘fiquei de mal’ do Halley, apenas frustrado por não ter completado o projeto da minha vida. Mas acho que já superei isso”, confessa Diniz.
Atualmente trabalhando como assessor da Associação Brasileira de Agências de Publicidade e planejador da Associação Brasileira de Propaganda, Diniz tem sido sondado por alguns interessados em reviver a Família Halley. O Cartoon Network faz parte dessa lista.
Mas a volta dos personagens ainda parece uma realização distante. “Todos que analisaram os desenhos nos últimos anos disseram que eles teriam que ser refeitos, modernizados. O potencial é bom, temos dezenas de roteiros prontos, mas eu teria que investir em novos desenhos, produção e outros elementos. Não tenho mais interesse em partir para um empreendimento desses com risco próprio”, diz o criador da Família Halley.
Há poucos anos, ele presenteou os leitores do UHQ ao liberar, com exclusividade para o site, imagens nunca antes divulgadas e que agora podem ser vistas novamente, na galeria no final deste texto.
“São pranchas da primeira história dos Halley, conforme apresentamos à Warner e à Marvel, com conceito visual e estilo de desenho diferentes do publicado pela Editora Abril. Mostramos duas HQs que encantaram os norte-americanos. Jamais foram publicadas”, explica Diniz.
Marcus Ramone era halleytor dos gibis da Família Halley e até hoje guarda a coleção como uma halleymbrança do cometa que alega ter visto.

quarta-feira, 11 de março de 2015

O uso da gravura de temática religiosa na formação do artista na Academia Imperial das Belas Artes *


Reginaldo da Rocha Leite

Este texto tem por objetivo central abordar a relevância da gravura artística de temática religiosa no ensino acadêmico brasileiro, tendo a Academia Imperial das Belas Artes como estudo de caso. É notório o papel fundamental dos livros de gravuras europeias utilizados durante o período colonial, alicerçando a realização de trabalhos pictóricos em tetos de igrejas brasileiras. No entanto, a contribuição da gravura não se restringe ao Brasil-colônia sendo, também, material didático nas aulas ministradas na Academia Imperial.
Durante o Oitocentos, no Brasil, a ausência de Museus implicou na busca por uma alternativa palpável para a consulta dos alunos a obras de grandes mestres europeus.  Adquirir pinturas originais ou cópias de telas estrangeiras nem sempre era possível; portanto, a saída para o impasse foi recorrer à gravura de reprodução.
Várias coleções de gravuras foram compradas pela Academia Imperial das Belas Artes respeitando determinados critérios. Essas coleções deveriam ser oriundas das Escolas Francesa, Holandesa, Alemã, Italiana ou Espanhola. Na seara da temática, as pranchas apresentavam especificidades: abordavam o desenho anatômico (muito importante durante a formação do artista oitocentista), os retratos (relevante fonte de renda para os alunos), as cenas mitológicas e, finalmente, os assuntos extraídos da Bíblia, da Legenda Áurea[1] e dos Evangelhos Apócrifos.[2]
A formação artística na Academia se dava não por um período de tempo específico para cada curso, mas sim de acordo com a absorção, por parte dos alunos, do conteúdo programático. O aprendizado estava pautado em regras rígidas e numa metodologia referencial. Primeiramente, o aluno deveria copiar os desenhos confeccionados pelos professores da Academia Imperial e as gravuras européias.  Concluindo essa fase, o estudante passaria a desenhar cópias das moldagens em gesso para, posteriormente, aprofundar a observação e o estudo do modelo vivo.  A última fase se dava com a prática da cópia de pinturas européias para finalmente produzir-se uma obra original. A gravura artística era, então, um dos alicerces da formação do artista oitocentista, servindo de base didática para todos os cursos da Academia.
As Coleções de Gravura da Academia Imperial das Belas Artes
A Academia Imperial era provida de coleções de gravuras com temáticas variadas, Escolas distintas, mas com funções convergentes. Existe uma quantidade significativa de documentos no Museu D. João VI/EBA/UFRJ indicando a aquisição e origem dessas gravuras de cunho didático.
Em relação aos assuntos, as gravuras ofereciam um leque bastante amplo de opções para estudo: partes do corpo humano (pés, orelhas, bocas, narizes, olhos, mãos e partes do rosto); corpos nus em diversas posições visando o aprendizado das proporções clássicas; cópias de esculturas greco-romanas; retratos de nobres e religiosos europeus; temas oriundos da literatura religiosa e mitológica; e finalmente, romances orientalistas. Cada Escola Européia tinha a sua linguagem distinta. As Escolas Holandesa, Alemã e Espanhola primavam pela retratística. As Escolas Francesa e Italiana, além do retrato, também valorizavam as gravuras produzidas a partir de pinturas e esculturas de artistas renomados. Pela dimensão física do comunicado, nos deteremos, somente, à relação da gravura de temática religiosa com a metodologia de ensino acadêmico tendo como suporte as gravuras da Escola Francesa.
A Gravura de Temática Religiosa
Não queremos afirmar que a temática religiosa seja superior aos outros assuntos abordados pela gravura, no entanto trabalhamos com a hipótese de que esse tema específico correspondia a todas as exigências pedagógicas de uma instituição de ensino artístico, fosse européia ou brasileira.
Durante a primeira metade do século XIX, os temas referentes à mitologia greco-romana ou à propaganda política do monarca detinham todas as atenções no âmbito da Academia Imperial das Belas Artes.  No entanto, com o advento da poética romântica e sua aceitação pelos membros da instituição, na segunda metade do Oitocentos, os temas trágicos, orientalistas, grandiloquentes e religiosos alcançam um elevado patamar. As gravuras, base para o estudo do desenho e do tema, que abordam assuntos românticos transformam-se em “meninas dos olhos” dos professores e alunos da instituição.
A literatura era vista como grande aliada na busca por assuntos que visavam o pathos fisionômico das personagens, a riqueza ornamental da indumentária, a dinâmica movimentação das figuras e o terror por parte dos suplícios dos santos mártires. Os textos literários convergiam diretamente com a produção artística oitocentista. Nesse período, a Europa estava mergulhada nos ideais românticos e as gravuras, então adquiridas pela Academia carioca, inseriam-se nesse perfil.
Delimitando-nos na temática religiosa, os assuntos poderiam emergir do Novo ou Antigo Testamentos, dos Evangelhos abolidos pela Igreja Católica, ou mesmo tendo como fonte inspiradora a vida dos santos buscadas na Legenda Áurea.
Alguns pintores eram escolhidos como modelo para terem suas obras reproduzidas em gravuras didáticas. A escolha não era feita aleatoriamente, a Academia Imperial privilegiava determinados nomes, como o de Girodet-Triosson que dentre todos os pintores copiados, em gravuras, era o mais significativo quantitativamente. A cena mais explorada pelos gravadores é a da obra O Dilúvio de Triosson [Figura 1]: várias gravuras dão conta da cena desesperada em que as personagens estão inseridas. Grande parte das gravuras constitui detalhes da obra pintada valorizando expressões faciais, movimentações dos corpos, evidenciações da musculatura e a inserção do teatro trágico como atmosfera.
O ensino na Academia Imperial era direcionado para a assimilação dos ideais clássicos de composição, mas com a difusão das gravuras com assuntos da história européia e sacra, a metodologia começa a sofrer uma adaptação que influenciará toda a segunda metade do século XIX. Anjos fúnebres, celestiais, cenas trágicas e martírios passam a povoar o imaginário criador dos alunos alicerçando uma enfática produção simbolista e de cunho romântico.
Pela cópia da gravura religiosa, o aluno além de ser inserido ao tema, também tem contato com a história sacra, a anatomia dos corpos, a fisiologia das paixões e com a indumentária antiga. Como já dissemos, apesar do ensino da gravura ter sido irregular durante o século XIX, o uso da gravura como ferramenta pedagógica atrelada à literatura foi extremamente relevante na formação do artista oitocentista alicerçando configurações formais e tipológicas. 


LEITE, Reginaldo da Rocha. O Uso da Gravura de Temática Religiosa na Formação do Artista na Academia Imperial das Belas Artes. 19&20, Rio de Janeiro, v. I, n. 2, ago. 2006. Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/ensino_artistico/reginaldo_gravura.htm

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* Texto da comunicação apresentada no XII Encontro de Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da EBA/UFRJ. 
[1] A Legenda Áurea é uma compilação das vidas de santos composta no século XIII pelo dominicano e hagiógrafo italiano Jacobus (Tiago) de Voragine (c. 1230-1298).
[2] Apócrifo é o documento escrito, que apesar de apresentar-se como inspirado, não faz parte do cânon bíblico judaico ou cristão.