O uso da gravura de temática religiosa na formação do artista na Academia Imperial das Belas Artes *
Reginaldo da Rocha Leite
Este texto tem por objetivo central abordar a relevância da
gravura artística de temática religiosa no ensino
acadêmico brasileiro, tendo a Academia Imperial das Belas Artes
como estudo de caso. É notório o papel fundamental dos
livros de gravuras europeias utilizados durante o período
colonial, alicerçando a realização de trabalhos
pictóricos em tetos de igrejas brasileiras. No entanto, a
contribuição da gravura não se restringe ao
Brasil-colônia sendo, também, material didático
nas aulas ministradas na Academia Imperial.
Durante o Oitocentos, no Brasil, a ausência de Museus implicou
na busca por uma alternativa palpável para a consulta dos
alunos a obras de grandes mestres europeus. Adquirir pinturas
originais ou cópias de telas estrangeiras nem sempre era
possível; portanto, a saída para o impasse foi recorrer
à gravura de reprodução.
Várias coleções de gravuras foram compradas pela
Academia Imperial das Belas Artes respeitando determinados critérios.
Essas coleções deveriam ser oriundas das Escolas
Francesa, Holandesa, Alemã, Italiana ou Espanhola. Na seara da
temática, as pranchas apresentavam especificidades: abordavam
o desenho anatômico (muito importante durante a formação
do artista oitocentista), os retratos (relevante fonte de renda para
os alunos), as cenas mitológicas e, finalmente, os assuntos
extraídos da Bíblia, da Legenda Áurea[1]
e dos Evangelhos Apócrifos.[2]
A formação artística na Academia se dava não
por um período de tempo específico para cada curso, mas
sim de acordo com a absorção, por parte dos alunos, do
conteúdo programático. O aprendizado estava pautado em
regras rígidas e numa metodologia referencial. Primeiramente,
o aluno deveria copiar os desenhos confeccionados pelos professores
da Academia Imperial e as gravuras européias. Concluindo
essa fase, o estudante passaria a desenhar cópias das
moldagens em gesso para, posteriormente, aprofundar a observação
e o estudo do modelo vivo. A última fase se dava com a
prática da cópia de pinturas européias para
finalmente produzir-se uma obra original. A gravura artística
era, então, um dos alicerces da formação do
artista oitocentista, servindo de base didática para todos os
cursos da Academia.
As Coleções de Gravura da Academia
Imperial das Belas Artes
A Academia Imperial era provida de coleções de gravuras
com temáticas variadas, Escolas distintas, mas com funções
convergentes. Existe uma quantidade significativa de documentos no
Museu D. João VI/EBA/UFRJ indicando a aquisição
e origem dessas gravuras de cunho didático.
Em relação aos assuntos, as gravuras ofereciam um leque
bastante amplo de opções para estudo: partes do corpo
humano (pés, orelhas, bocas, narizes, olhos, mãos e
partes do rosto); corpos nus em diversas posições
visando o aprendizado das proporções clássicas;
cópias de esculturas greco-romanas; retratos de nobres e
religiosos europeus; temas oriundos da literatura religiosa e
mitológica; e finalmente, romances orientalistas. Cada Escola
Européia tinha a sua linguagem distinta. As Escolas Holandesa,
Alemã e Espanhola primavam pela retratística. As
Escolas Francesa e Italiana, além do retrato, também
valorizavam as gravuras produzidas a partir de pinturas e esculturas
de artistas renomados. Pela dimensão física do
comunicado, nos deteremos, somente, à relação da
gravura de temática religiosa com a metodologia de ensino
acadêmico tendo como suporte as gravuras da Escola Francesa.
A Gravura de Temática Religiosa
Não queremos afirmar que a temática religiosa seja
superior aos outros assuntos abordados pela gravura, no entanto
trabalhamos com a hipótese de que esse tema específico
correspondia a todas as exigências pedagógicas de uma
instituição de ensino artístico, fosse européia
ou brasileira.
Durante a primeira metade do século XIX, os temas referentes à
mitologia greco-romana ou à propaganda política do
monarca detinham todas as atenções no âmbito da
Academia Imperial das Belas Artes. No entanto, com o advento da
poética romântica e sua aceitação pelos
membros da instituição, na segunda metade do
Oitocentos, os temas trágicos, orientalistas, grandiloquentes
e religiosos alcançam um elevado patamar. As gravuras, base
para o estudo do desenho e do tema, que abordam assuntos românticos
transformam-se em “meninas dos olhos” dos professores e
alunos da instituição.
A literatura era vista como grande aliada na busca por assuntos que
visavam o pathos fisionômico das personagens, a riqueza
ornamental da indumentária, a dinâmica movimentação
das figuras e o terror por parte dos suplícios dos santos
mártires. Os textos literários convergiam diretamente
com a produção artística oitocentista. Nesse
período, a Europa estava mergulhada nos ideais românticos
e as gravuras, então adquiridas pela Academia carioca,
inseriam-se nesse perfil.
Delimitando-nos na temática religiosa, os assuntos poderiam
emergir do Novo ou Antigo Testamentos, dos Evangelhos abolidos pela
Igreja Católica, ou mesmo tendo como fonte inspiradora a vida
dos santos buscadas na Legenda Áurea.
Alguns pintores eram escolhidos como modelo para terem suas obras
reproduzidas em gravuras didáticas. A escolha não era
feita aleatoriamente, a Academia Imperial privilegiava determinados
nomes, como o de Girodet-Triosson que dentre todos os pintores
copiados, em gravuras, era o mais significativo quantitativamente. A
cena mais explorada pelos gravadores é a da obra O Dilúvio
de Triosson [Figura
1]:
várias gravuras dão conta da cena desesperada em que as
personagens estão inseridas. Grande parte das gravuras
constitui detalhes da obra pintada valorizando expressões
faciais, movimentações dos corpos, evidenciações
da musculatura e a inserção do teatro trágico
como atmosfera.
O ensino na Academia Imperial era direcionado para a assimilação
dos ideais clássicos de composição, mas com a
difusão das gravuras com assuntos da história européia
e sacra, a metodologia começa a sofrer uma adaptação
que influenciará toda a segunda metade do século XIX.
Anjos fúnebres, celestiais, cenas trágicas e martírios
passam a povoar o imaginário criador dos alunos alicerçando
uma enfática produção simbolista e de cunho
romântico.
Pela cópia da gravura religiosa, o aluno além de ser
inserido ao tema, também tem contato com a história
sacra, a anatomia dos corpos, a fisiologia das paixões e com a
indumentária antiga. Como já dissemos, apesar do ensino
da gravura ter sido irregular durante o século XIX, o uso da
gravura como ferramenta pedagógica atrelada à
literatura foi extremamente relevante na formação do
artista oitocentista alicerçando configurações
formais e tipológicas.
LEITE, Reginaldo da Rocha. O
Uso da Gravura de Temática Religiosa na Formação
do Artista na Academia Imperial das Belas Artes.
19&20,
Rio de Janeiro, v. I,
n. 2, ago. 2006. Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/ensino_artistico/reginaldo_gravura.htm
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Texto da comunicação apresentada no XII
Encontro de Programa de Pós-Graduação em Artes
Visuais da EBA/UFRJ.
[1]
A Legenda Áurea
é uma compilação das vidas de
santos composta no século XIII pelo dominicano e hagiógrafo
italiano Jacobus (Tiago) de Voragine (c. 1230-1298).
[2]
Apócrifo é o documento escrito, que
apesar de apresentar-se como inspirado, não faz parte do
cânon bíblico judaico ou cristão.
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