Publicada na revista Traço, nº 2 em abril de 1979.
DEPOIMENTO
LUIZ SÁ - VOCÊ SE LEMBRA?
Henri Bon: Luiz, ficha completa.
Luiz Sá: Meu
 nome completo é Luiz Sá de Araújo. Nasci em 28 de setembro de 1907, dia
 do Ventre Livre, em Fortaleza, Ceará, que na época tinha menos de cem 
mil habitantes. Meu avô também se chamava Luiz Sá, era professor de 
desenho na escola normal e retratista muito bom. Não o conheci, mas 
havia um retrato seu em minha casa, de próprio punho. Eu perguntava à 
minha mãe se eram parecidos, ela dizia "meu filho, é o seu avô escrito".
 De fato era um grande desenhista.
 Sou bisneto
 de índia pura chamada Main-chã-cha que morreu com 99 anos e me dava um 
grande pavor; já imaginou o que é isso, uma índia de 99 anos! Admito que
 minha avó tenha casado com algum mestiço de origem holandesa, já que 
temos na família primos morenos e loiros, tão claros que nós os 
chamávamos de "bodes loiros". Por isso que eu acho essa divergência de 
raças uma bobagem.
Cartazete educativo - 1953
Ildo: E sua família, era muito grande?
Luiz Sá: Eu tinha apenas um irmão, mas havia uma tia com 11 filhos e outra com cinco. Acho que éramos ao todo uns vinte primos.
Henri Bon: Quantos dessa turma, além de você, seguiram o desenho?
Luiz Sá:
 Ninguém. Tinha uma prima que desenhava muito bem, mas não era criativa.
 A coisa mais importante em nossa casa lá no Ceará, era a sala de jantar
 com uma mesa do tamanho de um bonde. Mamãe colocava todos os primos 
três vezes por semana para desenhar modelos, nesta mesa. Enquanto eles 
copiavam, eu desenhava Tom Mix e outros bichos e minha mãe dizia "voc~e 
não vai dar para nada, menino". Naquele tempo a caricatura era obscura, 
não havia no Norte. Além disso, eu havia nascido caricaturista e 
modificava os modelos, desenhava muito nas calçadas e de vez em quando 
alguém passava dizendo - "Esse menino está se perdendo aqui, vai para o 
Rio, menino".
Floriano: E você acabou indo...
Luiz Sá: Com 21 anos, final de 28...
Floriano: Para desenhar?
Luiz Sá:
 Que nada, era a última coisa que eu pensava. Vim para ganhar a vida. 
Tínhamos uma grande fazenda lá no Ceará, seis léguas de largura, mas na 
seca de 17 morria gente até em Fortaleza e minha mãe teve de vendê-la 
por qualquer tostão. Quando vim pro Rio, a situação não era boa. 
Desembarquei em princípio de 29, tava era... pasei foi miséria, acabei 
parando no Hospital de Gamboa com icterícia por excesso de álcool. Sabe 
como é, a gente sempre encontra alguém para pagar uma cana... eu ia 
bebendo.
Lá conheci 
uma freira, já idosa, que passou a gostar muito de mim. Não tinha visita
 nem carta e a distração era a conversa. Um dia ela me passa chorando 
pelo corredor e eu perguntei ao enfermeiro o que havia acontecido. Ele 
me disse "era um santo que quebrou". Fui lá, peguei o santo e fui 
ajeitá-lo. Depois encarnei, como dizia a minha mãe, "Santo não se pinta,
 se encarna".
Aí não tive mais sossego de tanto santo para restaurar que apareceu.
Aconteceu 
que o vigia da noite voltou para o exército, era época da revolução de 
30, eu já estava bom e assumi o seu lugar. Não podia dormir, rapaz. 
Ganhava 60 mil réis e para passar o tempo ia desenhando. Fiz então uns 
quadros sobre a História do Brasil.
Floriano: Você já havia tido algum contato com a imprensa em sua terra?
Luiz Sá:
 Andei fazendo alguma coisa, muito raramente para o Jornal do Commercio,
 no ano de 28. Ainda, no Liceu, rabiscava um jornalzinho à mão, só um 
exemplar, que ía passando entre os alunos.
Henri Bon: Voltando ao hospital...
Luiz Sá:
 Fiz mais quinze quadros, mas o traço ainda não era este, depois 
aprimorei. Um dia mostrei a um pintor cearense, o Pacheco de Queiroz, 
que me disse "Ih, Luiz, isso é muito bom" e levou para o Adolfo Aizen. O
 Malho naquela época estava fechado pela revolução de 30 e eles haviam 
lançado outra revista com o nome de "Eu Vi". Bom, o Adolfo Aizen me 
procurou e disse "pago 10 mil réis por cada desenho, publico e devolvo o
 original".
Mais tarde 
ele me deu a ideia de criar no Tico-Tico uma história infantil. Eu 
publiquei então o Reco-Reco, Bolão e Azeitona de 1931 até 1960 quando 
fecharam a revista.
Tinha 
outros personagens que surgiram mais tarde, Maria Fumaça e Pinga Fogo, o
 detetive desastrado, para a Cirandinha, e Faísca, o papagaio.
Ildo: Você foi o primeiro brasileiro a fazer desenho animado. Conta essa história!
Luiz Sá:
 Eu desenho muito bem letras e por isso fazia as apresentações dos 
jornais cinematográficos. O rapaz com quem eu trabalhava me disse um dia
 "Ô Luiz, por que você não faz um desenho animado?".
Eu havia 
feito antes uns comerciais de cama patente em que o personagem jogava 
madeira por um buraco em uma grande máquina e a cama saía completa no 
outro lado. Fiz outro de um jogador de futebol correndo com a bola, de 
repente ele parava, com a mão na cabeça, chegava o massagista com um 
comprimido, ele tomava, continuava correndo e marcava o gol. Fiz um 
bocado desses. Resolvi então criar um maior, eram Aventuras de 
Virgolino, isso em 39, acabei deixando o filme em seu laboratório 
fechado pela guerra, onde estavam vendendo celulose. E o meu desenho 
lavado com ácido, acabou vendido como sucata (risos de indignação).
O segundo, 
vendi para o dono de uma loja de projetores que acabou cortando-o, 
oferecendo os pedacinhos como brinde a quem comprasse a máquina (mais 
risos de indignação). Há uns três anos atrás o Parrot localizou uns 
pedaços, utilizando-os em um curta metragem que fizeram sobre mim.
Ildo: Como era o processo, você fazia somente o desenho?
Luiz Sá: Não, eu fazia tudo, desenhos, animação, cores, até o cenário de fundo.
Ildo:
 Na década de 40 o Disney resolveu aparecer no Brasil em visita de "boa 
vontade", época em que criou o Zé Carioca. Ele não te tocou para 
participar do grupo de criação?
Luiz Sá: Não,
 Eu até levei o meu segundo desenho animado para uma reunião que o 
Disney havia feito aos artistas nacionais, mas o diretor do DIP impediu 
que eu mostrasse, dizendo que era muito pobre. É claro que era pobre, 
foi feito para mostrar o esforço de um sujeito que tinha feito sozinho, 
enquanto no exterior havia uma equipe para isto.
Ildo: Porque estava previsto, ou se pensava, que os artistas nacionais desenhariam o Zé Carioca...
Luiz Sá: O problema é que o Disney impedia a criação e todos os seus auxiliares tinham que desenhar igualzinho.
Davilson: Eu
 vou te explicar porque o diretor do DIP achou pobre: na época o Disney 
estava começando e não admitia concorrentes, haja visto o Latini (único 
cara que conseguiu fazer um desenho animado de longa-metragem no Brasil 
nos idos de 50) que foi boicotado porque o Disney estava precisando de 
mercado.
Henri Bon:
 A gente tem que considerar também que a vinda do Disney ao Brasil era 
uma jogada para ganhar o mercado latino-americano, já que o europeu 
estava fechado pela guerra. Portanto o Zé Carioca, uma vez perdida a 
utilidade, foi relegado a um segundo plano de onde jamais saiu. No 
fundo, era uma jogada financeira Disney-Rockfeller.
Henri Bon: Mas o Faísca é anterior ao Zé Carioca...
Luiz Sá:
 Sim, e tinha ainda um papagaio anterior, o Louro, que formava o trio 
com o Totó, o cachorrinho e Catita, o rato. Acontece que ficamos muito 
tempo no baú, já não dava para concorrer com os americanos pelo baixo 
preço.
Ildo:
 Na verdade, se alguém hoje tentar fazer uma animação em longa-metragem 
no Brasil, vai ser tão pobre quanto a trinta anos atrás. Um exemplo 
disso é o Piconzé, que levou dois anos (na verdade quatro) para ser 
realizado, feito no maior improviso...
Duda: Agora, Luiz, sobre exposições...
Luiz Sá:
 Andei fazendo umas e outras (ao fundo a voz do Davilson pedindo limão).
 A primeira foi logo em 31 sobre a história do Brasil, chamava-se 
"Galeria de quadros célebres da História do Brasil ao estilo moderno". 
Depois acabei fazendo outra, já em 34, levando para o nordeste, eram 
quadros regionais. Em 47 expus em São Paulo, assuntos de esporte e 
somente em 65 voltei a expor.
"DISNEY ATRAPALHAVA A CRIAÇÃO; TODOS TINHAM QUE DESENHAR IGUALZINHO"
March: E quanto a outras atividades...
Luiz Sá: Fiz
 dois livros somente com histórias de Reco-Reco, Bolão e Azeitona. Eles 
não eram assim. Costumo dizer que a gente sempre desenha melhor com o 
passar do tempo. Fui aperfeiçoando-me. O Bolão usava chapéu, tirei, 
acabei colocando uns fios de cabelo em sua careca.
Trabalhei 
também para o Serviço Nacional de Educação Sanitária, onde publicava 
aqueles almanaques de saúde. Um dia aparece um diretor querendo me 
exigir horário fixo, gritando comigo. Então eu lhe disse "Sou mais novo 
que o senhor e posso gritar mais alto" e dei um berro. Depois voltei 
para casa apresentando minha demissão. Ele escreveu uma carta ao 
Ministério dizendo que não poderia me dispensar, pelo esforço de guerra,
 mas não era nada disso. Acabei arranjando um pistolão para ser 
demitido. E fui para o cinema.
Floriano: Jornal da Tela?
Luiz Sá: E
 outros. Eu fazia uma charge sobre a notícia. Recebia a encomenda que às
 vezes aprontavam em um fim de semana para entregar na segunda-feira. 
Sobre esporte era ainda fácil, as sociais davam mais trabalho. Um dia o 
Luiz Severiano Ribeiro recebe uma carta de um industrial paulista, nem 
sei quem é, sem um pingo de senso de humor, reclamando de um desenho que
 eu havia feito de um cara olhando com uma lente para um caroço de 
feijão no fundo de um prato. Esta charge ilustra uma reportagem sobre o 
banquete de trezentos talheres que ele havia dado.
Ildo: E quanto à questão do direito autoral. Como se fazia naquela época?
Luiz Sá: Não havia isso. Era pelo desenho, a gente recebia na hora sem qualquer outro direito.
Eu estou 
lembrando agora de um episódio que me deu alguns trocados: eu havia 
desenhado na série "História do Brasil" um quadro sobre a fundação do 
Rio de Janeiro, em que, num prédio em construção, havia uma placa AQUI 
HÁ OTIS. Não fiz isso com maldade, mas o fato é que um diretor da 
empresa acabou gostando, comprou o quadro por cem mil réis e o 
distribuiu pelo mundo.
Ildo: Até alguns anos a estação das barcas mantinha algumas ilustrações suas. Que fim levaram aqueles quadros?
Luiz Sá:
 Não sei. Foram talvez estragados pelo tempo. Ainda me lembro que um 
capitão teve a idéia de substituí-los periodicamente por outros que eu 
iria fazendo. Mas sabe como é, foi ele que acabou substituindo a idéia 
engavetada e nunca mais falou no assunto.
Henri Bon: E sobre uns slides educativos que você andou fazendo?
Luiz Sá: Vim
 pra São Gonçalo há 8 anos e depois de velho acabei tuberculoso, ficando
 internado mais de uma ano. Aí o Dr. Ataídes me pediu para fazer uns 
desenhos sobre doenças e suas causas. Eu fiz uns cinquenta, mas só tenho
 metade comigo. Quem tem a série completa é o Hospital Heitor Carrilho.
March: Quais os seus últimos trabalhos?
Luiz Sá:
 Bem, eu fui procurado por algumas pessoas ligadas ao partido do Governo
 para fazer umas ilustrações em propaganda eleitoral. Felizmente 
trabalho remunerado. Tenho trabalhado também desde abril em alguns 
álbuns que quero deixar para minha família.
Ildo: Luiz, quando você parou e por que?
Luiz Sá: Quando
 fechou O Malho em 1960. Bem, eu ainda continuei no cinema até 65, 
fazendo apresentações para filmes e telejornais, quando trabalhei com 
Reginaldo Farias e Jece Valadão. Depois veio o Castelo com essa história
 de retirar a obrigatoriedade de apresentação do curta-metragem. O 
cinema pagava razoavelmente bem e de uma hora para outra perdi o 
emprego. Foi-se o meu padrão de vida que diga-se de passagem era muito 
bom.
Andei por 
1966 fazendo alguns desenhos de apresentação para o programa de Heron 
Domingues na TV Continental. E depois, nessa época eu morava em Paquetá,
 e quem mora em Paquetá não quer nada com o trabalho, sabe como é que 
é...
Atualmente
 Luiz Sá, afastado de toda atividade profissional, repousa dos anos de 
luta recolhido em uma pequena residência em São Gonçalo, que de modo 
algum faz juz à genialidade de quem foi o pioneiro do desenho animado no
 Brasil.
Fomos 
encontrá-lo às 10:43h do dia dois de fevereiro de 1978. Presente Henri 
Bon, Ildo Nascimento, Levy Szmaragd, Marcus César, Duda, march, Fernando
 Nunes, Rossini, Floriano, Davilson e Júlio César Valadão Diniz.
Tomamos de assalto a casa, 
munidos de cachaça, violão, filmadora, gravadores e máquinas 
fotográficas, com o objetivo - dentro de nossas limitações - de traçar 
um retrospecto de sua vida artística, que atravessou quatro décadas 
ininterruptamente.
Convite para a exposição Cartuns Cinematográficos. 1994
fonte: TIRAS Memory