Ninguém parecia notá-lo ali: um homem sombrio que costumava 
repousar à beira da ponte Hammersmith (acima), nas noites de 1916, em 
Londres. E ninguém parecia notar que, durante essas visitas, ele estava 
jogando algo no rio Tâmisa. Algo pesado.
Ao longo de mais de cem viagens noturnas ilícitas, este homem cometia
 um crime: contra o seu parceiro, dono de metade do que era arremessado 
ao Rio Tâmisa; e contra ele mesmo, que motivou a criação daquilo que ele
 resolveu jogar fora. Este indivíduo venerável, fundador da lendária 
editora 
Doves Press e
 a mente por trás da fonte Doves, era um homem chamado T.J. Cobden 
Sanderson. E ele estava jogando dentro do rio as fontes de metal cuja 
criação ele supervisionou meticulosamente.
Sendo uma presença importante no movimento 
Arts and Crafts 
da Inglaterra, Codben Sanderson defendeu o trabalho manual contra a 
industrialização. Ele era brilhante e criativo, e de algumas maneiras, 
um ludita
 — porque ele acreditava que assim que morresse, a tipografia criada por
 ele seria vendida pelo sócio com quem ele brigava, para uso em 
impressoras industriais.
 
Alfred, Lord Tennyson, Sete Poemas e Duas Traduções, Doves Press 1902.
Assim, noite após noite, ele deixava seu legado no rio, ferrando 
metade do trabalho do sócio e destruindo para sempre uma tipografia bela
 e lendária. Pelo menos era nisso que ele acreditava.
***
Depois de quase cem anos, em novembro do ano passado, um grupo de 
antigos funcionários do exército – que hoje trabalham para o Porto de 
Londres – se juntaram para descer ao fundo do Rio Tâmisa em busca de 
pequenos pedaços de metal, talvez centenas de milhares deles, que Cobden
 Sanderson jogou dentro do rio muitos anos atrás.
Eles fizeram isso a comando e custo de 
Robert Green, um designer que passou anos 
pesquisando e recriando a fonte perdida, que hoje está disponível no 
Typespec.
 Conforme Green me disse em uma conversa por telefone, o Porto de 
Londres hesitou em permitir que seu grupo de mergulhadores buscasse a 
tipografia perdida. “A preocupação deles era que eu fosse um sujeito 
maluco procurando por uma agulha em um palheiro e gastando um monte de 
dinheiro com isso”, disse rindo.
 
Cortesia de Robert Green
Não é difícil entender como Green parecia maluco. Um civil oferecendo
 pagamento para que mergulhadores da cidade buscassem destroços nas 
profundezas lamacentas do Rio Tâmisa, talvez por semanas, procurando por
 pequeninos pedaços de metal que foram jogados lá por um designer 
ensandecido há mais de cem anos? É, parece bem maluco.
No final das contas, demorou apenas vinte minutos para que eles começassem a encontrar pedaços das fontes de metal.
Green passou anos pesquisando a história de Cobden Sandeson, usando 
psicologia forense para compreender os atos do homem que viveu cem anos 
atrás, estudando como e onde ele teria jogado as peças. Green limitou o 
local de busca em uma pequena porção do rio, e foi lá que os 
mergulhadores encontraram a maioria das peças. “Eles gostaram muito da 
ideia”, lembra Green. “Eles queriam encontrarar algo, e encontraram”.
 
Cortesia de Robert Green
Nos dois dias de mergulho, eles encontraram centenas de peças de tipografia, conforme documentado por 
Justin Quirk do The Sunday Times,
 que participou do mergulho. Mas não se tratava do conjunto completo. 
Green lembra que a Ponte Hammersmith foi alvo de dois bombardeios do 
Exército Republicano Irlandês, sendo que um deles fez as águas do rio 
atingirem ondas de quase 20 metros de altura, depois que uma mala 
carregando explosivos foi despejada próximo ao local onde foram 
arremessadas as peças de tipografia.
Por isso, as peças de metal poderiam ter se espalhado por outros 
lugares do rio. É também possível que algumas delas tenham sido 
incorporadas ao concreto que é derramado nos arredores da ponte para 
reparos.
***
Hoje, fontes tipográficas são basicamente pedacinhos de código 
binário em nossos computadores. Mas a era da fonte digital é nova, 
contando apenas com algumas décadas.
Cobden Sanderson e o sócio dele, Emery Walker, fundaram a Doves Press
 em 1900. Walker era um homem de negócios, com muitas preocupações no 
mundo, mas Cobden Sanderson era o perfeccionista criativo — um homem 
obcecado com autenticidade e arte. Juntos, eles comissionaram uma 
fonte para a imprensa deles, baseada na fonte Venetian do século XV. 
Isso significava ter de pagar um “cortador” para criar “punhos” de metal
 para cada letra da fonte — da qual uma matriz seria criada ao apertar 
uma peça de cobre no punho de metal. Depois, a fonte poderia ser 
inserida na matriz.
 
Fotografia de Sam Armstrong, cortesia do Sunday Times
A fonte deles foi criada em 1899 e a dupla a usaria para criar belos 
livros encadernados à mão, e projetados com o equilíbrio perfeito entre 
trabalho manual e utilidade moderna. Cobden Sanderson era um pouco 
esnobe, no sentido de apenas querer permitir que as melhores literaturas
 fizessem uso da fonte dele – apenas “as mais belas palavras”. Eles 
imprimiram 
Paraíso Perdido. Eles imprimiram a 
Bíblia inglesa. Hoje, cópias destes livros são extremamente raras, e custam milhares de dólares em leilões.
Mas em pouco tempo, a Doves Press estaria em apuros. De acordo com 
informações da TypeSpec sobre a parceria,
 Walker queria fechar a empresa e dividir o metal — milhares de quilos 
dele — da tipografia entre ele e Cobden Sanderson, e cada um seguiria o 
próprio caminho depois disso.
Conforme explica o Sunday Times,
 eles chegaram a um acordo que Cobden Sanderson manteria a fonte até o 
momento de sua morte, e Walker seria o dono depois disso. Mas a ideia de
 que um trabalho feito por ele cairia nas mãos de Walker o horrorizava. 
Por isso, no decorrer dos anos seguintes, ele decidiu colocar um plano 
em ação – um plano que privaria Walker de receber a parte dele do 
acordo.
 
Cortesia de Robert Green
“Ele levou alguns anos até decidir jogar a fonte fora: ele ruminou 
por anos se deveria fazer isso ou não”, diz Green. Ele escreveu sobre a 
possibilidade em longos diários (“ele seria considerado alguém que 
compartilha demais” hoje, conta), deixando para trás informações 
detalhadas sobre este tumultuoso pensamento. No fim, ele decidiu que 
preferia destruir a fonte a vê-la feita em uma equivalência mecânica de 
sua versão original. “Ele se apaixonou pela ideia”, alega Green. Foi o 
próprio Cobden Sanderson quem disse: “Se Emery Walker quer encontrá-la, 
ele terá que mergulhar”.
***
Green passou anos pesquisando a tipografia da Dove Press — ele até a 
reprojetou, depois de milhares de desgastantes horas de pesquisa, e a 
publicou em 2013 como uma fonte digital chamada de 
Doves Type, que qualquer pessoa pode comprar.
No entanto, há mais ou menos um ano, ele começou a se perguntar se 
existiam destroços da tipografia que poderiam ser resgatadas do rio. “As
 pessoas diziam que ninguém nunca as encontrou”, ele diz. “Mas também 
não encontrei nenhum registro que alguém havia tentado procurar por 
elas”.
 
A fonte atualizada, cortesia de Robert Green.
O que nos traz a uma ótima questão: por que motivo alguém procuraria 
por ela? O que a tornava tão especial, tão valiosa para ser salva?
A Doves Press era uma entidade única, mas, de algumas formas, espelha
 o que acontece nos dias de hoje no mundo do design. No início da era 
moderna, a Doves foi fundada para preservar uma arte que tinha centenas 
de anos de idade. Mas ela também estava destinada a fracassar, 
ficando marcada na história como uma excentricidade que morreu assim que
 impressoras mecânicas chegaram ao mercado. Ela valorizava algo acima de
 tudo: fazer as coisas à mão e com total dedicação.
 
‘Oenone’, Alfred, Lord Tennyson, Sete Poemas e Duas Traduções, Doves Press 1902.
Para Green, que trabahou no mundo do design desde que era jovem, a 
glorificação que o movimento Arts & Crafts dava a trabalhos feito à 
mão existe até hoje. “A revolução industrial os assustou”, ele diz sobre
 os designers daquele período, expondo como a digitalização desvalorizou
 o trabalho de designers até os dias de hoje. “Uma parte inteira da 
classe média é afetada”, diz. “O design gráfico está completamente 
desvalorizado. É muito difícil se manter sendo um designer”.
Métodos tradicionais estão novamente se popularizando. “As pessoas 
estão retomando a arte da impressão manual para se manter”, diz Green, 
mais ou menos como fizeram Cobden Sanderson e seus contemporâneos. Não 
só por causa da autenticidade que ela dá ao trabalho, mas também, diz 
Green, “porque é divertido”.
***
É estranho imaginar que um designer nascido cem anos depois de Cobden Sanderson reconstruiu o trabalho de vida dele.
E de alguma maneira, Green remedia a briga entre Cobden Sanderson e 
Emery Walker, o parceiro dele. Ao invés de vender as peças de metal da 
tipografia que ele resgatou do Rio Tâmisa, ele manterá metade e dará o 
restante para a Emery Walker Trust, entidade que transformou a antiga 
casa de Walker em um 
museu sobre o trabalho dele.
 Cem anos atrás, Cobden Sanderson disse que Walker teria que mergulhar 
para conseguir a parte dele do trabalho. Estranhamente, ele terá a 
metade que tem direito, graças à generosidade de Green.
Hoje, qualquer pessoa pode 
baixar e comprar a versão digital
 de Green da fonte de Cobden Sanderson. “Ele provavelmente ficaria 
horrorizado”, ri Green. Entretanto, ele não vê a versão digital da fonte
 como uma recriação exata da original. É mais como um eco ou uma 
simulação — tem vida própria.
É uma história que contempla as mais importantes e controversas 
ideias sobre design do século passado. Cobden Sanderson reagiu — 
criminalmente! — à ameaça que a profissão dele se tornaria irrelevante 
com a chegada das máquinas. Hoje, designers ainda lutam para encontrar 
significado e reconciliar o próprio trabalho com esta espécie de lógica 
maquinária que nasceu com as tecnologias que Cobden Sanderson nem 
poderia ter imaginado que existiriam.
Cem anos depois, as preocupações de um homem obcecado com arte ainda 
ressoa sobre nós. Entretanto, sem computador — uma máquina à qual o 
movimento Arts & Crafts se opunha — a fonte Doves não existiria. 
Hoje, ela existe, uma amálgama de tecnologias e máquinas que estavam 
apenas nascendo quando a fonte foi arremessada ao rio.
Você pode ler mais sobre esta história na 
TypeSpec e no 
Sunday Times.
A fonte tipográfica que levou um homem à loucura e deu origem a um mistério de 100 anos - Gizmodo Brasil