Como ser um escritor de ‘literatura séria’




 
 

Antes
de tudo, seja homem, branco, heterossexual, acima dos quarenta,
professor universitário ou jornalista. Caso seja mulher, escreva sobre a
questão da mulher. Caso seja negro, sobre a questão do negro. Caso seja
gay, sobre a questão do gay. Enfim, você entendeu a ideia.

Quando
perguntarem “por que você virou escritor?”, tenha um bom passado.
Passados medíocres são brochantes. Há somente duas opções: (i) você veio
de uma família muito culta, cresceu lendo Balzac, Pessoa e Proust;
expressar suas ideias e aflições foi uma necessidade de toda sua bagagem
cultural ou (ii) você tem origem humilde, pais analfabetos; a
literatura era seu refúgio em uma infância difícil e solitária. Esta
segunda funciona melhor.

Quando perguntarem suas referências,
esqueça nomes como Agatha Christie, Stephen King, Sidney Sheldon e
qualquer outro escritor que tenha feito sucesso ou que esteja na lista
de mais vendidos do momento. Diga o que tem que ser dito: seu trabalho
dialoga com Lispector, tem tons de Cortázar e nuances de Saramago, mas,
no fim das contas, você acredita ter voz própria — então, lance o
desafio: “Espero que a crítica consiga compreender meu trabalho melhor
do que eu”.

Não basta fazer literatura, meu amigo. É preciso
dançar conforme a música, corresponder às expectativas, preencher o
modelo, ser cool,intelectual. Quando perguntarem seu livro de
cabeceira, nem pense em citar qualquer exemplar que seja encontrado com
facilidade nas livrarias. Opte por livros raros, com autores de nomes
impronunciáveis. Decore uns trechos desses escritores e trate de
citá-los em qualquer texto. Tenha um poema na manga. E duas frases de
efeito. É o que diz Vladimir Maiakóvski: “A arte não é um espelho para
refletir o mundo, mas um martelo para forjá-lo”.

É importante que
algum ou todos os aspectos do seu trabalho tenham a ver com sociologia,
filosofia, mitologia ou matemática, e é imprescindível falar sobre isso.
Todos adoram quando você mistura literatura com matemática, mesmo que
ninguém nesse ramo se importe muito com matemática. Sua proposta deve
ser explorar os movimentos e os limites da linguagem. Repita “linguagem”
ao menos quatro vezes em qualquer de suas entrevistas. E repita
“retrato social” ao menos cinco vezes.

Conceitos como “arquitetura
da trama”, “plot-twist” e “ganchos de capítulos” estão absolutamente
vetados. O verdadeiro escritor de literatura séria não se preocupa em
contar boas histórias. Esta arte menor e confortável deve ser deixada
para os novelistas, para os dramaturgos e para os autores de
“literatura” de entretenimento — sabe aqueles que escrevem livros de
vampiros com câncer que curtem sexo sadomasoquista para colorir? Então.

Evite
falar em gêneros literários. Sua literatura não se define. É
desafiadora, incômoda e incompreensível. Publique um livro — curto — a
cada três ou quatro anos. Publicar um livro por ano quebra a magia,
mostra que você não é aquele escritor recluso em sua choupana, vitimado
por intensas reflexões, que joga toneladas de páginas no lixo e sangra
ao escrever cada palavra.

Quando perguntarem sobre os temas de sua
obra, deixe fluir toda a sua complexidade. Os menos capazes o acusarão
de vagueza pelos cantos, mas é só por não conseguirem enxergar o valor
do seu trabalho. Leitores e críticos competentes não terão problemas.

Em
qualquer entrevista, responda com três ou quatro dos conceitos
destacados a seguir: você busca tratar da “realidade do indizível”,
enxerga sua voz numa “zona cinzenta” entre a “reflexão do ser em si
mesmo” e a “representação da experiência humana”. Com sua obra, você
pretende “desnudar os limites da autoanálise” e a “prática formal da
arte”, enquanto explora as “instâncias sociais” e a “barbárie em
fragmentos”. Sua “fruição artística” é “difusa e dolorosa”, com
“pensamentos que dissecam a alma” e enfrentam o “objeto estético”. Por
fim, use aleatoriamente palavras como “hibridez”, “estilo”,
“autoficção”, “ausência”, “dialética” e “fronteiriça”.

Imagem
pessoal é indispensável. Tenha barba. Use óculos. Organize antologias.
Assine orelhas. Ganhe prêmios. Se tiver sido traduzido, ponto extra. Se
for do Sul, ponto extra. Se for judeu, ponto extra. Se for jovem e fizer
sucesso, ponto extra. Se for da periferia, ponto extra. Colunista de
jornal também costuma pegar bem.

A etiqueta exige falsa modéstia.
Mas seja sério. Evite sorrir em fotos. Evite selfies. Evite entrevistas.
Evite autopublicação. Evite elogiar entusiasticamente o livro do colega
— elogie autores mortos, sempre de maneira vaga, digo, complexa: “A
obra traz uma hibridez de estilo que demonstra que a dialética da
ausência é fronteiriça à autoficção”. Evite redes sociais. Evite eventos
populares. Evite vender mais do que dez mil exemplares. Evite leitores.
Apenas evite.







fonte:

Como ser um escritor de ‘literatura séria’ - Jornal O Globo

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