*Nota: este texto terá muitas generalizações. Se você se sentir ofendido por uma generalização…
Há alguns anos venho explicando a amigos em conversas pessoais o que
penso ser a diferença entre o Rio de Janeiro e São Paulo. Pois uma vez
uma senhora numa mesa ao lado da minha já se levantou para me
cumprimentar pelo brilhantismo de minha explicação; e eu mesmo sinto que
é hora de registrá-la por escrito, para que a humanidade a conheça e,
mais importante, não a atribua a outra pessoa. Afinal, há algum tempo
descobri que David Foster Wallace usou a mesma imagem que eu mesmo (em
minha peça) para falar do sujeito que se jogou do World Trade Center no
dia 11 de setembro; e eu, que nunca nem li mais do que meio ensaio de
Wallace, agora passarei por plagiário, ou, o que é mais grave,
praticante da intertextualidade.
Admito que amigos me ajudaram na formulação dos conceitos e sobretudo
nos exemplos, mas a fórmula que enuncia a grande diferença veio desta
minha privilegiada cachola. E lá vai: a diferença entre o Rio e São
Paulo é que o Rio é uma sociedade aristocrática, com os vícios e as
virtudes de uma sociedade aristocrática, e São Paulo é uma sociedade
burguesa, com os vícios e as virtudes de uma sociedade burguesa.
O Rio, é claro, foi a capital do Império e depois da República. Ou
seja: uma cidade de burocratas, uma sociedade baseada no privilégio.
Privilégio que começa com os famosos “PR” inscritos nas portas das casas
para anunciar que aquelas propriedades seriam usadas pelo Príncipe
Regente. A população interpretava o “PR” como “ponha-se na rua”. (E não
falei que “PR” são as iniciais de “privilégio” para evitar a
leminskização do cosmos.) Mas eis que cá estamos, todos nos achando
privilegiados. Privilégio significa “lei privada”. Por isso o Rio deve
ser a capital mundial dos concurseiros, que têm algo como zero de
espírito de serviço público, e cem de espírito de obtenção dos
privilégios da burocracia. Por isso também o Rio é uma cidade onde
absolutamente tudo é pessoal. Para você ir num restaurante e ter uma boa
experiência, é preciso conhecer o maître, os garçons, ou ao menos ter
aquele clique inicial de simpatia na hora de chegar. Não existe nenhum
atendente no Rio, do setor público ou do privado, que acredite que sua
obrigação é atender, gostando ou não de quem será atendido. Por isso o
Rio é a cidade da afetação perpétua de intimidade, que só direi que
esconde um enorme desprezo se o leitor aceitar que esse desprezo
significa que o outro de fato é imediatamente esquecido.
Mais ainda, no Rio de Janeiro é preciso conhecer as pessoas. Nosso
elitismo é em parte de classe, em parte grupal. Nossa classe está aberta
a quem imitar nossos trejeitos. Daremos tudo a um dos nossos, mesmo que
seja uma besta, e negaremos tudo a quem não for um dos nossos. Quantas
vezes não vi, nas duas faculdades de Letras que frequentei, na PUC e na
UFRJ, alunos talentosos que desconheciam certas regras de traquejo
social – que, em suma, traíam sua origem social pobre – serem
desprezados por professores – sem que nem soubessem que estavam sendo
desprezados? Esses pobres alunos não entendiam que fazer a pose era mais
importante do que estudar.
Mas há as virtudes, claro, e a primeira virtude é que no Rio de
Janeiro a ideia de cultura não é estranha à vida, porque para um
aristocrata ela é normal – tão normal que ele não precisa ficar falando
dela. Jamais um carioca vai convidar você para ver quantos livros ele
tem. Ele tem livros. Por quê? Você não tem? Que coisa. Isso tudo faz com
que a discussão no Rio seja mais leve ou ao menos mais fluente. Se
estamos discutindo, é porque naquele momento somos iguais. Não estamos
questionando um as credenciais do outro, estamos só falando daquilo que
pensamos, não esperamos que venha daí nenhuma consequência prática. Por
isso o carioca fala o que pensa e nunca interpreta isso como arrogância.
Nosso parâmetro é outro. (Não que aquilo que o carioca pensa seja
necessariamente mais bem pensado.)
Outra virtude é que o carioca está sempre à vontade. As pessoas podem
achar que eu sou intelectual, e olha que eu até tenho um par de óculos
com aro mais grosso, mas é muito difícil encontrar alguém no Rio que
queira ostentar uma identidade. O sujeito é surfista no verão, um dia
corta o cabelo punk, vai em todos os lugares, e entende que tudo isso é
meio que só de brincadeira. Em São Paulo não. Em São Paulo há punks. De
verdade. Que acreditam no punk. Um carioca pensa nisso, diz “hã?” e
esquece.
E essa é a chave para pegar o que há de burguês em São Paulo. Se no
Rio todo mundo parece filho de um aristocrata decadente, em São Paulo
todo mundo parece filho do dono do armazém, mesmo que seja bilionário.
São burgueses que se ilustram e não conseguem deixar de se orgulhar de
sua ilustração, de querer alardeá-la. Cultura é outro objeto que se
adquire e que se ostenta. É como um Porsche, que, bem, você não compra
para deixar na garagem.
Por isso também, como falei, o paulista tem uma identidade. Ele é um
hipster, ou não gosta de hipsters. É punk, ou skinhead, ou não gosta
deles. Ele estudou “na Poli” ou “no Largo de São Francisco” e acha isso o
máximo. (Não estou dizendo que não seja.) Aqui no Rio a gente não tem
orgulho de onde a gente estudou. Porque nós somos deuses. Já éramos
especiais e o lugar é que ficou mais especial com a nossa presença. É
por isso também que emporcalhamos tudo. Um deus não liga para nada.
(Ver, a esse respeito, a cena de
O Leopardo em que o Príncipe de Salina explica por que as estradas sicilianas são tão sujas.)


Por ser burguês, o paulista sabe o quanto as coisas custam. Sabe que
sua posição no mundo é frágil, e depende de ele não criar muitos
problemas. Isso é verdade, não estou negando. Mas essa atitude leva a
uma diplomacia extremada nas relações. Vou dar um exemplo. Certa vez, há
muitos e muitos anos, dei um breve curso em São Paulo, e os alunos me
perguntaram o que eu achava de tal livro. Peguei o livro, dei uma
olhada, e no dia seguinte falei: “Acho uma fraude. Ele pegou trechos de
um livro antigo, que eu conheço muito bem, traduziu e não deu crédito.
Aliás, ele reproduziu a fraude de outro autor que já tinha feito a mesma
coisa com o mesmo livro. Gente, traduzir e dizer que é seu é fraude.”
Pois o diretor do lugar onde dei o curso – uma pessoa boníssima, sem a
menor ironia – veio dizer que minha postura era “agressiva”. Mas,
caramba, agressão é você vender gato por lebre. A lição que levei foi
que em São Paulo estamos sempre pisando em ovos. Mesmo quando o
interlocutor diz que não estamos, que podemos falar abertamente.
Claro que o melhor lado de São Paulo é a eficiência. O paulista
compreende bem as relações impessoais. Todos os garçons do Brasil
deveriam ser paulistas, ou ter treinado em São Paulo. Mais ainda, o
paulista busca realmente a qualidade. Você vê isso porque o nível médio
de tudo é mais alto em São Paulo. O Rio é uma cidade de extremos; num
dia é perfeita, no outro dia é um inferno, e você nunca sabe qual
personalidade ela vai assumir. São Paulo ao menos é constante. O que é
bom é bom, o que é ruim é ruim, e você já conhece.
O paulista também é um manso, em comparação com o carioca. Há não
tanto tempo cheguei numa estação de metrô umas seis da tarde. Tinha
gente demais. Cheguei a pensar em desistir. Porém, na minha perplexidade
fiquei olhando aquela gente toda e… percebi que as pessoas estavam
ordeiramente organizadas numa fila. Era apertado, mas pacífico. No Rio,
qualquer aglomeração daquelas no metrô me daria praticamente a certeza
de uma convulsão social. Por isso também o trânsito em São Paulo pode
ser de maneira geral muito mais intenso, mas também é muito mais
civilizado. Porque o paulista, burguês cioso, não vai arriscar suas
propriedades como o carioca, esse divino temerário.
O Rio é essencialmente um balneário, mas nós cariocas estamos
convencidos de que é o melhor lugar do universo. Quando vou à praia no
Posto 6 e tiro a cabeça d’água e vejo as montanhas de Niterói num dia
sem névoa, é isso que eu penso. Nós, cariocas, somos aristocratas
decadentes e meio delirantes. O Rio é nossa droga, é a cidade que nos
maltrata e também nos estonteia. Sua beleza não é nosso mérito: já
destruímos praticamente todos os prédios bonitos da cidade (na orla, não
consigo pensar em nenhum entre o Copacabana Palace e a Barra da
Tijuca). São Paulo é uma megalópole de negócios. Pode impressionar, mas
ficar em São Paulo será sempre uma decisão racional, e não pelo menos
meio irracional, como ficar no Rio.
Mesmo que no Rio chova muito mais do que se conta. O que é muito chato.
fonte: http://pedrosette.com/2013/07/02/a-diferenca-entre-o-rio-de-janeiro-e-sao-paulo/