A burqa também existiu no Algarve: era o bioco e dava liberdade à mulher



No século XIX, um antigo governador civil que não gostava de ver
as mulheres todas tapadas decretou a abolição do uso do trajo
tradicional de todas as ruas e templos. Agora, foi recriado um bioco
moderno mas a cabeça fica destapada.







Vasco Célio







A mulher algarvia, há pouco mais de um século, também usou burqa
mas sem conotações religiosas. À capa negra que se estendia da cabeça
aos pés e só permitia ver os olhos, foi dado o nome de bioco ou rebuço.
Um antigo governador civil, em nome da nova civilização, decretou que
este traje tradicional fosse banido das ruas e templos. Agora, o bioco
está de volta em versão moderna, com outras histórias para contar.


O antigo governador civil de Faro, Júlio
Lourenço Pinto, nascido no Porto, viu nesta peça de vestuário “vestígios
da dominação muçulmana” que entendia não terem razão de existir no
final do século XIX. Vai daí, extinguiu o bioco. No seu livro de
crónicas O Algarve, publicado em 1894, justifica: Trata-se de
uma “máscara” que poderia dar azo a certas libertinagens. Uma das razões
invocadas prende-se com a fidelidade conjugal. Imagine-se uma “frágil
pecadora” que, vestida de forma a não ser reconhecida, poderia atirar-se
“sem perigo a aventura amorosa-romanesca ou a façanha de infidelidade
conjugal”, afirma. Por isso, servindo-se dos poderes que lhe estavam
conferidos, decretou: “É proibido nas ruas e templos de todas as
povoações deste distrito o uso dos chamados rebuços ou biocos de que as
mulheres se servem escondendo o rosto”, refere o artigo 32, do
Regulamento Policial do distrito, publicado a 6 de Setembro de 1892.
Lurdes
Silva, natural do Porto, “apaixonou-se” pelo bioco quando visitou o
Museu do Trajo, em São Brás de Alportel – local onde se podem encontrar
cópias de alguns exemplares. O amor à primeira vista por uma peça de
vestuário, confessa, não é coisa rara. Mas, neste caso, houve mais do
que isso. Esta professora da Universidade do Algarve, na área nas
ciências económicas e empresariais, sentiu necessidade de mergulhar na
cultura da região. “Levei dois anos a investigar a história desta peça”.
Por fim, decidiu partilhar os conhecimentos e começou a produzir biocos
colocando, no forro da peça, a história deste vestuário contada em
português e inglês. Em 1922 no livro Os Pescadores, Raul
Brandão dizia que se tratava de “um traje misterioso e atraente”, que
alimentava especulações. Numa passagem da obra, referindo-se às mulheres
de Olhão, escreve: “Quando saem, de negro envoltas nos biocos, parecem
fantasmas. Passam, olham-nos e não as vemos”.

Mas qual é relação da burqa com o bioco? A burqa,
diz Lurdes Silva, é uma “imposição masculina, aqui passa-se o
contrário: o homem não quer que ela use, mas ela usa para ter mais
liberdade”. Por conseguinte, os três modelos que concebeu, com design de
Maria Caroço, puxam pelo lado estético da peça, sublinhando as
histórias amorosas e o sentido da liberdade. Por isso, cada um tem a sua
designação: mistério, tradição e paixão. O preço dos modelos recriados
varia entre os 139 e os 159 euros.

Assim, a novidade deste Verão é
um bioco, de um tecido leve, com grafitti assinado por Sen Silva – um
artista com várias obras públicas em Olhão e com vários trabalhos
expostos numa galeria em Almancil. “Tanto pode ser usado numa cerimónia,
como numa festa sunset”, diz Lurdes Silva, referindo-se ao bioco
“mistério”, uma peça sugerida pela cantora Viviane, a artista que
integra o projecto ”Rua da Saudade”, em homenagem ao poeta Ary dos
Santos, e canta “Do Chiado até ao Cais, e que se rendeu à recriação
deste traje regional. As cores predominantes são o verde/figueira, o
azul lusco-fusco do pôr-do-sol algarvio e o tijolo dos mercados de
Olhão. Uma colecção destas peças vai estar patente ao público, na FIL,
em Lisboa, entre 27 de Junho a 5 de Julho, numa mostra dedicada à
inovação. Para já, no Centro de Investigação e Informação do Património
de Cacela, está patente, até 12 de Julho, na parte da tarde, uma
exposição de biocos da autoria da artista plástica Joana Bandeira.

Bioco, um mito bem guardado
Mas
nos finais do século XIX, a visão de Júlio Lourenço Pinto estava longe
deste recente entusiasmo pelo bioco já que considerava que este não
passava de um vestígio da cultura islâmica “sem elegância nem beleza”,
feito de um tecido “negro sepulcral”, que não se coadunava com evolução
civilizacional. Com alguma semelhança a este traje encontra-se o capelo,
da ilha Terceira – que ainda faz parte do folclore açoriano e se tornou
símbolo dessa região. No Algarve, a extinção oficial deu-se em 1892.
Porém, continuou a ser usado em Olhão até meados dos anos 30 do século
XX. O director do Museu do Trajo em São Brás de Alportel, Emanuel
Sancho, diz que não passa de “um mito” a relação que se estabeleceu
entre esta peça e o véu islâmico. “Há um século tapava-se a cabeça em
toda a Europa – desde a Holanda, onde não havia biocos, até à Inglaterra
e à França”, observa.





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