O culto do multiculturalismo





 
Rodrigo Constantino
 

“Uma cultura só tem importância se for boa para os indivíduos”. (Kwame Anthony Appiah)


Uma das maiores ameaças à liberdade
individual atualmente encontra-se no culto do multiculturalismo. Vários
autores notaram este risco, entre eles Thomas Sowell, da Escola de
Chicago. Em sua coletânea de textos Barbarians Inside the Gates,
Sowell lembra que o mundo sempre foi multicultural, por séculos antes
de o termo ser cunhado. Tratava-se de um multiculturalismo num sentido
prático, diretamente oposto ao que o atual culto dos relativistas
culturais prega. Como exemplos, Sowell lembra que o papel onde seu livro
foi escrito fora inventado na China, as letras vieram da Roma antiga e
os números da Índia, através dos árabes. O autor é um descendente da
África, que escrevia enquanto escutava música de um compositor russo.
A razão pela qual tantas coisas se
disseminam pelo mundo todo está no simples fato de que algumas coisas
são consideradas melhores que outras, e as pessoas desejam o melhor para
si. Esta obviedade é justamente o contrário do que o credo do
multiculturalismo atual defende, alegando que nada é melhor ou pior, mas
“apenas diferente”. Na verdade, as pessoas mundo afora não apenas
“celebram a diversidade”, elas escolhem aquilo de sua própria cultura
que desejam manter e aquilo que preferem abandonar em prol de algo
melhor vindo de fora. Quando os índios americanos, por exemplo, viram os
cavalos dos europeus, eles não se limitaram a “celebrar a diferença”,
eles começaram a montar em vez de ir andando. À contramão do que o culto
do multiculturalismo defende, as pessoas não buscam viver “em harmonia
com a natureza”, e sim obter o melhor que puderem. Eis o motivo pelo
qual, desde automóveis até antibióticos, os bens demandados se
espalharam pelo mundo. Não importa o que os filósofos do
multiculturalismo dizem, é isso que milhões de pessoas fazem.
Para Sowell, este tipo de
multiculturalismo moderno é uma dessas afetações que algumas pessoas
podem se dar ao luxo de ter enquanto estão usufruindo de todos os frutos
da tecnologia moderna. Normalmente não são pessoas pobres vivendo em
países muito atrasados que bradam sobre as “maravilhas” das diferentes
culturas. São “intelectuais” de países desenvolvidos que olham com
desdém para os processos que tornam possível a produção de todo tipo de
conforto que desfrutam.
Uma cultura é, segundo a definição da Enciclopédia Britânica,
um padrão integrado de conhecimento humano, crenças e comportamentos
que são resultados da capacidade humana de aprendizagem e transmissão de
conhecimento para as gerações seguintes. Cultura consiste então em
língua, idéias, crenças, costumes, códigos de conduta, instituições,
ferramentas, técnicas, rituais, arte, símbolos etc. A cultura de um povo
pode evoluir com o tempo. Cultura se aprende. Os relativistas culturais
tentam logo acusar de “nazistas” aqueles que conseguem enxergar
objetivamente instituições e costumes superiores – ignorando que Hitler
falava em superioridade racial dos arianos, algo que seria inato, não
aprendido. O conceito de raça humana sequer faz muito sentido. Já
estoque de conhecimento, instituições, valores e avanços não só existem e
variam muito de cultura para cultura, como uns são bastante superiores a
outros. Ou será que alguém realmente acredita que a cultura da Suíça é
apenas “diferente” daquela existente no Zimbábue, e não melhor? Será que
os costumes de sacrifício infantil praticados pelos incas seriam
atualmente vistos como “apenas diferentes” pelos relativistas culturais?
Como conciliar isso com a demanda por um código de direitos humanos
universais?
Algo inerente aos relativistas culturais,
pelo fator contraditório de suas crenças, é o constante uso de dois
pesos e duas medidas. Ao mesmo tempo em que relativizam todas as
barbaridades provenientes da cultura atrasada que pretendem defender,
esquecem o relativismo e partem para a objetividade de julgamento na
hora de condenar as culturas que detestam – normalmente as mais
avançadas e livres. Assim, cortar o clitóris passa a ser apenas uma
“diferença cultural”, como colocar um brinco na filha. Mas o
“consumismo” ocidental é algo podre, que deve ser combatido, e não
apenas uma “diferença” de valores. Uma cultura que prega a morte de
“infiéis” é apenas uma cultura “diferente”, enquanto se um país for se
defender dessa ameaça, sua “cultura belicosa” passa a ser repugnante. Os
relativistas fingem não perceber que se “tudo vale”, porque nenhuma
cultura é superior a outra, então um povo pode alegar ter como valor
supremo em sua cultura o extermínio de outras culturas. Com qual
critério objetivo um relativista consegue julgar algo, se tudo não passa
de “diferenças culturais”? Quando os relativistas culturais alegam, por
exemplo, que nenhuma cultura está num estágio inferior e que seus
costumes são “apenas diferentes”, estão sendo coniventes com a prática
nefasta de matar por apedrejamento uma mulher cujo único “crime” foi ter
cometido adultério. Queiram ou não, o fato é que os adeptos desse culto
do multiculturalismo são cúmplices dessas barbaridades.
O filósofo Kwame Anthony Appiah explicou
de forma bastante objetiva os riscos da visão coletivista da cultura, em
detrimento ao direito de livre escolha individual. O autor, nascido em
Gana, é Ph.D. pela Universidade de Cambridge e lecionou em Harvard e
Princeton, além de autor do livro Cosmopolitanism, onde defende que a
globalização fez bem às culturas regionais. A globalização não
uniformiza, diversifica. A reclusão é que exaure a inspiração. Culturas
fechadas estão fadadas ao insucesso. Basta comparar a diversidade nos
Estados Unidos, com inúmeras culturas diferentes convivendo lado a lado,
com a maior homogeneização de uma Coréia do Norte, isolada do mundo.
A população deve ter a liberdade de
escolha de quais produtos culturais deseja consumir. Appiah dá o exemplo
das camisetas que os africanos usam, deixando de lado suas roupas
coloridas tradicionais. Se as camisetas cumprem a função de cobrir o
corpo e são mais baratas, que mal há em deixar as vestes tradicionais
para ocasiões especiais apenas? Tirar o direito de escolha dos
indivíduos em nome da “preservação cultural” beira o desumano, e
normalmente quem pensa assim está longe, no conforto justamente de
culturas mais liberais. O mesmo vale para o resto dos produtos
existentes. Os indivíduos devem ser livres para decidir qual filme
desejam assistir, quais músicas querem escutar ou qual comida pretendem
comer. Quanto mais liberdade de mercado, com abertura para diferentes
países e culturas, maior o número de opções disponíveis. Appiah chama de
“preservacionistas culturais” aquelas pessoas com bom padrão de vida em
algum país ocidental, normalmente, que olham para as culturas
diferentes e exóticas como algo interessante, bonito, que deveriam ser
mantidas para sempre da mesma forma. Mas, como Appiah diz, “se o costume
é ruim para o bem-estar de uma grande parcela daquela população, o fato
de fazer parte da cultura não é motivo para insistir no erro”.
O foco deve ser o indivíduo e sua
liberdade de escolha, não a tribo, a nação ou a cultura. A cultura não é
um fim em si, mas um meio para a felicidade dos indivíduos. E cada um
deve ser livre para escolher como quer buscar sua felicidade. Eis
justamente o que o culto do multiculturalismo deseja impedir.

Texto presente em “Uma luz na escuridão”, minha coletânea de resenhas de 2008.




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