a ideologia de um cinema falsamente ingênuo



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Este artigo deseja mostrar que filmes inteligentes podem estimular
novas atitudes, pensamentos e sentimentos enquanto filmes aparentemente
bobinhos podem manipular as pessoas no sentido do consumismo , dos
preconceitos e dos tabus.




O cinema comercial americano nos induz a modelos idealizados.



Sou suspeita para falar sobre cinema americano pois fiz uma opção
sentimental e intelectual pelo europeu há anos luz. Isso não quer dizer
que os Estados Unidos não possuam grandes diretores e filmes memoráveis.
Muitos destes grandes diretores afirmam se inspirar em cineastas
europeus. E grande parte dos filmes mais irreverentes e subjetivos
criticam ferozmente o American way of life. Basta pensarmos em exemplos
não tão antigos como Pequena Miss Sunshine ( 2006) e Beleza americana (
1999). O primeiro questiona o sentido de ser fracassado em uma sociedade
que divide as pessoas entre vencedoras e perdedoras. Tal linha de
pensamento é conduzida por um personagem especialista em Marcel Proust ,
complexo escritor francês que teve uma vida de fracassos para os
padrões vigentes das sociedades capitalistas.


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Abigail Breslin, protagonista de "Pequena Miss Sunshine".






Em Beleza americana o personagem vivido por Kevin Spacey afirma que o
melhor momento do seu dia é quando ele se masturba. Neste filme , mais
um retrato feroz do American way of life, todos usam máscaras. Ninguém é
realmente o que aparenta ser. A loira sexy na verdade é virgem. A
personagem vivida por Annette Bening , esposa de Kevin Spacey , esconde
atrás da sua motivação histérica a categoria mais deprimente de
fracassada. O vizinho machão e homofóbico na verdade é um gay reprimido.
Poderia citar muitos outros exemplos de filmes estadunidenses que
quebraram protocolos ; que questionaram o sistema e encantam com o senso
de realidade e trazem à tona a necessidade de entender o cinema como
algo que extrapola o mero entretenimento. A maioria assiste a filmes
para sonhar. Alguns poucos assistem para acordar. Porém, a maioria das
produções são para ganhar dinheiro mesmo.


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No entanto, falar que muitos filmes servem apenas para entreter ,
não significa dizer que tais obras são ingênuas ideologicamente falando.
Alguns filmes extremamente comerciais e aparentemente “bobinhos” ;
feitos apenas para rir , chorar ou dar medo, carregam uma ideologia
pesadíssima e perigosa, pois diferentemente do cinema independente e de
arte que nos convida a refletir , o extremamente comercial apresenta
todas as suas verdades como inquestionáveis. Vamos a um exemplo? A
mentira ( 2010) . Nome bem sugestivo. O filme fala sobre uma garota
recatada que quer se passar por uma devoradora de homens. Mais uma vez a
questão das máscaras para parecer bem sucedido em uma sociedade com
valores materialistas. Mas o grande problema deste filme se concentra na
personagem vivida por Lisa Kudrow , a atriz que interpretou por dez
anos a insólita e carismática Phoebe no seriado Friends. Lisa Kudrow
interpreta em A mentira uma diretora de escola que se envolve
sexualmente e afetivamente com um aluno. Mas o filme mostra apenas o
lado sexual da relação, ignorando a complexidade de um caso entre
professor/aluno.


Situação semelhante foi apresentada no filme The English teacher ,
traduzido para o Brasil como Adorável professora , estrelado pela
talentosíssima Julianne Moore. Na visão destes filmes, professoras e
diretoras que se envolvem com estudantes agem como loucas surtando ou
transmitem doenças venéreas porque são promíscuas e asquerosas. A
diretora vivida por Lisa Kudrow contaminou o aluno. A professora de
Julianne Moore tem relações sexuais com o estudante em plena sala de
aula e depois adota um comportamento transloucado. Se formos comparar
estas duas obras com o filme inglês Notas sobre um escândalo ( 2006)
veremos que a personagem da professora que comete a transgressão é um
ser humano completo, denso, que sofre e se sente sozinha. O seu erro não
a transforma em uma louca ou em uma mulher promíscua.


Até os filmes de terror não fogem à ideologia. Em obras como
Sexta-feira 13 , a mocinha boazinha , que gosta de crianças, boa filha e
recatada nunca morre. São brutalmente perseguidas , mas no final,
sempre acontece alguma coisa; sempre chega alguém que as salva. Em
filmes como os do diretor italiano Mario Bava qualquer um poderia
morrer: bonzinhos e mauzinhos; recatadas e taradas.


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Barbara Steele em "A máscara de Satã" , do italiano Mario Bava.








O cinema comercial estadunidense aparenta ser o que menos ensina. Mas
provavelmente é o que mais ensina; é o que mais fornece lições de moral
fechadas. Lições adequadas aos interesses de um sistema que prioriza o
sucesso e não a felicidade.


Grande parte da produção comercial americana se dedica a fazer
historinhas aparentemente bobinhas , mas que na realidade colocam os
Estados Unidos como os mocinhos do mundo e seus inimigos como os vilões.
Durante a Guerra Fria , que se estendeu do fim da Segunda Grande Guerra
até a queda do Muro de Berlim ( 9 de novembro de 1989) muitos filmes
mostraram os países da extinta União Soviética como os vilões do mundo.
Por exemplo: O Franco atirador ( 1978). Confesso que me deixei levar por
este filme esteticamente comovente. Mas na cena final, quando os
personagens cantam o hino dos Estados Unidos , senti uma cortina ser
aberta e pude ver os atores demaquilados. Percebi que na realidade o
filme era uma propaganda americana. Os Estados Unidos nunca engoliram
perder para o Vietnã e atribuíram aos soldados rivais uma crueldade
exclusiva, que na verdade existe em todo povo que vence.


Táxi Driver de Scorsese foge à regra. Neste filme , um veterano da
guerra do Vietnã salva uma garota da prostituição, deixando um enorme
rastro de sangue. A família da garota e a sociedade agradecem. Por outro
lado o personagem nos parece o tempo todo desajustado. Enfim, o filme
não fornece uma resposta fechada , o que o torna no mínimo muito
interessante.


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Robert De Niro em "Taxi Driver" , de Martin Scorsese.








Esta relação maniqueísta ainda vigora no cinemão americano. Eles
continuam como os mocinhos. Agora os vilões são outros. Durante toda a
sua trajetória, o cinema comercial americano funcionou e funciona como
um instrumento de persuasão ; uma máquina de fazer ideologia disfarçada
de indústria do entretenimento. Consideramos quase todas as culturas não
ocidentais estranhas e brutais porque as conhecemos por meio de jornais
e filmes comerciais , veículos nem sempre preocupados em se aprofundar
no sentido antropológico da palavra. Sabemos fatos , costumes. Mas não
entendemos os porquês. Julgamos o outro por meio de nossos critérios.


Somos estimulados a repetir padrões comportamentais que nos fazem
sofrer e nos roubam a espontaneidade para nos encaixarmos em um pseudo
modelo de sucesso, que nada tem a ver com felicidade no sentido mais
genuíno da palavra. As comédias românticas induzem às mulheres a
esperarem por um tipo de relacionamento idealizado , o que faz muita
gente sofrer demais. O dinheiro, o poder e a beleza são supervalorizadas
; a sexualidade é tratada como um tabu; o consumismo é estimulado. Por
tal razão é muito enriquecedor assistir a todo tipo de filme e entrar em
contato com fontes de conhecimento variadas. Desta forma, poderemos
construir nossas próprias opiniões com um olhar mais abrangente.





a ideologia de um cinema falsamente ingênuo

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